CONCEPÇÃO TRADICIONAL E CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS
Em uma concepção tradicional, direitos humanos são direitos inerentes ao ser humano, essenciais à dignidade humana (ou a uma vida digna), fruto de lutas e conquistas históricas e positivados em documentos e diplomas jurídicos internacionais.
O conceito de direitos humanos pode ser decomposto em quatro partes.
Na primeira parte, temos: direitos inerentes ao ser humano.
O realce, aqui, é ao jusnaturalismo, que concebe os direitos como algo próprio, inseparável da natureza humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, não descarta essa vertente jusnaturalista.
Com efeito, segundo o preâmbulo dessa declaração, fica reconhecida a dignidade como inerente a todos os membros da família humana. Mais ainda, nos termos do art. 1º, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Dizer que os direitos são inerentes ao ser humano e que todos seres humanos nascem livres e iguais significa dizer que os direitos humanos são direitos naturais. Em outras palavras, os direitos humanos fazem parte da natureza humana, o que revela uma vertente jusnaturalista na nossa definição.
Assim, a verdadeira natureza do ser humano é o fato de ele ser titular de direitos humanos. O Estado revela uma criação posterior e artificial, com o objetivo de proteger os direitos humanos, que, por serem inerentes ao ser humano, são anteriores à criação do Estado.
Se os direitos humanos fazem parte da natureza humana, segue-se, ao menos abstratamente, sem levar em conta as condições concretas de cada sociedade, que todos os seres humanos são titulares dos direitos humanos. Temos, aí, uma concepção universal dos direitos humanos, derivada do Direito Natural.
Na segunda parte do conceito os direitos humanos são aqueles que se referem aos direitos essenciais à dignidade humana ou a uma vida digna.
Nem todos os direitos são direitos humanos. Só o são aqueles essenciais à promoção da dignidade humana. Numa relação contratual de compra e venda, entre dois particulares situados num plano de igualdade, o direito ao preço, decorrente da venda de um carro, não traduz direito humano. É um direito patrimonial decorrente de um contrato civil de compra e venda.
Por outro lado, numa relação jurídica entre um consumidor e um plano de saúde, o direito à internação, no caso de uma doença grave, tem que ver com o direito à vida. Dada a essencialidade à dignidade humana, temos, aí sim, um legítimo direito humano.
Assim, direitos humanos são assim chamados não porque sejam titularizados pelos seres humanos, mas, sim, porque apresentam caráter indispensável para a vida digna. Em outras palavras, direitos humanos têm que ver com bens e valores essenciais para que cada ser humano possa desenvolver as capacidades potenciais[1].
Na terceira parte do conceito, o realce foi à concepção histórica dos direitos humanos.
Não basta que um direito faça parte da natureza humana. É preciso que esse direito seja efetivado. Essa efetivação é obra de muitas lutas, com avanços e retrocessos no decorrer da caminhada humana pelo percurso da história.
Na quarta parte do conceito, percebe-se que os direitos humanos são aqueles previstos em documentos e diplomas normativos internacionais.
Já os direitos fundamentais são aqueles direitos, também essenciais à dignidade humana, previstos nas Constituições dos Estados. Veremos que essa distinção doutrinária costuma ser amplamente aceita, embora grande parte dos direitos previstos em documentos internacionais também encontrem previsão nas Constituições nacionais, a tal ponto de se falar em direitos humanos fundamentais[2].
[1] WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos, pág. 25. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
[2] As bancas de concurso público têm seguido a distinção, que apresentamos, entre direitos humanos e direitos fundamentais.
Nota-se que, por meio da concepção tradicional, o conceito apanha elementos históricos, de direito natural e jurídicos e os reúne, com o objetivo de alcançar uma definição jurídica de direitos humanos.
Por sua vez, há uma concepção contemporânea, que prima por aspectos históricos, filosóficos e sociológicos.
Dentro dessa concepção contemporânea, Norberto Bobbio revela que os direitos humanos traduzem direitos históricos, ou seja, direitos “(…) nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”[1].
Já, para Hannah Arendt, direitos humanos não são um dado, mas um construído, algo fruto da invenção humana, em processo de construção e reconstrução[2].
Ainda segundo a concepção contemporânea, Luigi Ferrajoli enxerga os direitos humanos como a lei do mais fraco contra a lei dos mais fortes, isto é, uma luta contra todas as formas de absolutismos, sejam estes provindos do Estado, do setor privado ou da esfera doméstica[3].
Observa-se que, na concepção tradicional, o conceito de direitos humanos volta-se para um aspecto mais jurídico, sem descuidar de elementos históricos e de direito natural. Já, na concepção contemporânea, os direitos humanos são vistos não sob o prisma jurídico, mas sob o aspecto histórico de lutas na busca de direitos e contra todas as formas de absolutismo. Nesta última concepção, os direitos humanos não são algo finalizado, mas, sim, uma busca constante pela preservação dos direitos já consolidados e uma busca por direitos a serem conquistados. Uma luta do mais fraco contra os mais fortes.
Em ambas as concepções – tradicional e contemporânea – encontra-se presente a percepção de que os direitos humanos são direitos históricos. Os direitos históricos, vimos, fazem ressaltar as lutas, a construção, dentro de uma concepção de luta do mais fraco contra o mais forte.
Por isso, é possível dizer que os direitos humanos são conquistas paulatinas, fruto de um acúmulo de lutas em geral promovidas pelos fracos contra os mais fortes. Aqueles que lutam pelos direitos assumem um papel fundamental na concretização dos direitos humanos.
Assim, existe uma relação muito próxima entre os defensores dos direitos humanos e a percepção de que os direitos humanos são direitos históricos. Em outras palavras, para que os direitos humanos, que são direitos históricos, sejam protegidos e conquistados, é preciso proteger quem luta pela concretização desses direitos.
Daí que, segundo a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “(…) os Estados têm o dever de facilitar os meios necessários para que os defensores de direitos humanos realizem livremente suas atividades; protegê-los quando são objeto de ameaças para evitar os atentados à sua vida e integridade; abster-se de impor obstáculos que dificultem a realização do seu labor, e investigar séria e eficazmente as violações cometidas contra eles, combatendo a impunidade”[4].
[1] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, pág. 5. 23ª tiragem. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[2] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional, pág. 56. 9ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.
[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional, pág. 56. 9ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.
[4] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso García y familiares Vs. Guatemala. Sentença (Exceções Preliminares, Mérito, Reparação e Custas), §179, julgamento no dia 29 de novembro de 2012. O caso diz respeito a Edgar Fernando García, professor de educação primária e sindicalista. Edgar Fernando foi preso por agentes militares e nunca mais foi encontrado. O Estado guatemalteco não realizou investigações nem puniu os responsáveis pelo desaparecimento fora do ativista pelos direitos humanos.