Trilhas Jurídicas

CONTEÚDO MÍNIMO DA DIGNIDADE HUMANA

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Não há, nas normas jurídicas internas e internacionais, nenhuma definição de dignidade humana, cujo entendimento é intuito. Há aspectos filosóficos, políticos, sociais e religiosos que cercam o tema, o que dificulta a extração de um conceito1.  

Confira-se a ORIGEM FILOSÓFICA DA DIGNIDADE HUMANA, O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA e o FUNDAMENTO INTERNACIONAL DA DIGNIDADE HUMANA.

Não obstante, é possível estabelecer um conteúdo mínimo da dignidade humana, de modo que se facilite a aplicação do instituto, com uma certa dose de objetividade2

Nesse sentido, o conteúdo mínimo da dignidade humana identifica a existência de 3 (três) elementos: 1º) O valor intrínseco de todos os seres humanos; 2º) A autonomia de cada indivíduo; 3º) A limitação da dignidade por algumas restrições legítimas impostas em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário)

conteúdo mínimo da dignidade humana mapa mental

1º CONTEÚDO MÍNIMO DA DIGNIDADE HUMANA: VALOR INTRÍNSECO

Valor intrínseco é o elemento ontológico da dignidade humana, isto é, aquilo que é ligado ao ser da própria dignidade. É o conjunto de características inerentes a toda pessoa, conferindo a ela um status especial e superior no mundo, distinto das outras espécies. Isso não autoriza arrogância e indiferença em relação aos outros seres, que contam também com a própria dignidade3.

Quando se diz que a dignidade humana conta com um valor intrínseco, conclui-se que ela é um valor bom em si mesmo, um valor que não tem preço e que, por isso, não tem caráter instrumental.

A dignidade como valor intrínseco tem, por isso, natureza antiutilitarista. É a manifestação do imperativo categórico de Kant: o ser humano é um fim em si mesmo, jamais um meio para a realização de metas coletivas ou projetos pessoais de terceiros4

Além disso, a dignidade humana como valor intrínseco impede que o ser humano seja utilizado como instrumento ou meio para metas coletivas ou projetos pessoais de terceiros. Ou seja, a dignidade humana não tem caráter instrumental, de modo que se repudia a utilização de qualquer mecanismo autoritário contra a pessoa

Vejamos um caso importante julgado pela Corte Interamericana, que repudiou a utilização dos seres humanos como instrumentos para a realização de projetos autoritários de poder. 

Um coletivo de advogados defensores de direitos humanos na Colômbia foi submetido a condutas de violência, intimidações, assédio e ameaças. O Estado forneceu dados desse coletivo a paramilitares; funcionários estatais deram declarações estigmatizantes contra tais defensores dos direitos humanos. Além disso, o Estado colombiano não realizou uma investigação efetiva para que se pudesse descobrir a verdade sobre os fatos. 

Segundo a Corte Interamericana, quando os funcionários estatais produziram declarações estigmatizantes contra os advogados que compõem o coletivo de defesa de direitos humanos, o Estado colombiano violou o direito à honra em conexão com à dignidade humana, nos termos do art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos5

Portanto, as declarações estigmatizantes de funcionários do Estado fizeram com que pessoas defensoras de direitos humanos não fossem consideradas como fins em si mesmas, mas como instrumentos de projetos pessoais de terceiros. 

Trata-se de uma clara violação ao valor intrínseco da pessoa, o qual, aliás, está na origem de um conjunto de direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à vida, que é uma pré-condição básica para o exercício de qualquer outro direito6

Além do direito à vida, o valor intrínseco da dignidade humana protege o direito à igualdade, à integridade física e psíquica, o direito à integridade psíquica ou mental. No direito à integridade psíquica ou mental, insere-se o direito à honra pessoal e à imagem, bem assim à privacidade7.

2º CONTEÚDO MÍNIMO DA DIGNIDADE HUMANA: AUTONOMIA

O segundo elemento, que também expressa o conteúdo mínimo da dignidade humana, é a autonomia. A autonomia nada mais é do que a base para o livre arbítrio das pessoas. Isso permite que cada indivíduo, da sua própria maneira, busque o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. Em outras palavras, a pessoa tem o direito de escolher as regras que irão reger a própria vida8

Seguem dois casos, julgados pela Corte Interamericana, em que se verifica a violação da dignidade humana enquanto autonomia

No primeiro caso, uma mulher, devido a várias intervenções médicas mal sucedidas por ocasião do parto, acabou sofrendo enfermidades incapacitantes para o trabalho. 

Referida mulher sofreu violência obstétrica, que nada mais é do que uma espécie de violência física ou psicológica contra a mulher, praticada por profissionais de saúde, durante a gestação ou parto, por meio de abusos, negligência ou desrespeito. 

A violência obstétrica viola a dignidade enquanto autonomia, a qual representa o direito de as pessoas escolherem o que entendam ser o melhor para a própria vida. Ao ficar incapaz para o trabalho por conta de intervenções médicas mal sucedidas e sofrer violência relacionada à liberdade reprodutiva, houve, no caso julgado pela Corte Interamericana, interrupção dos projetos de vida de uma mulher.

A propósito, segundo a Corte Interamericana, o direito à liberdade reprodutiva é parte do direito à saúde. O direito à liberdade reprodutiva se relaciona, por um lado, à autonomia e à liberdade reprodutiva enquanto direito a tomar decisões autônomas sobre a própria vida, o próprio corpo e a saúde sexual e reprodutiva, livre de toda violência, coação e discriminação9

Além disso, nos termos do entendimento da Corte Interamericana, o direito à liberdade reprodutiva se refere ao acesso tanto aos serviços de saúde reprodutiva como à informação, à educação e aos meios que permitam exercer o direito a decidir, de forma livre e responsável, o número de filhos que a mulher deseja ter e o intervalo de nascimentos10

Aliás, a violência obstétrica é uma violação de direitos humanos e uma forma de violência baseada no gênero11. Nesse sentido, nos termos do art. 7 da Convenção de Belém do Pará12, cabe aos Estados prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher13.

Observa-se, portanto, que a violência obstétrica traduz uma violação à autonomia, que é um dos elementos que compõem a dignidade humana. Uma mulher que sofre uma violência no parto, seja por abuso ou negligência, deixa de fruir o direito a exercer a liberdade reprodutiva, ou seja, uma escolha fundamental que fez para a própria vida. 

Quando houver ofensa à autonomia enquanto elemento da dignidade humana, é possível que a vítima obtenha a reparação pelo dano ao projeto de vida. Vamos a mais um caso julgado pela Corte Interamericana que ilustra bem isso. 

O Senhor Luiz Alberto Cantonal Bonavides foi preso ilegalmente e sofreu tortura em presídio peruano. Devido à prisão, esse senhor não conseguiu realizar o projeto de cursar uma universidade

O Estado peruano não puniu os responsáveis nem investigou o caso. Foi, então, ajuizada uma demanda contra o Estado do Peru na Corte Interamericana de Direitos Humanos.  

 A Corte Interamericana, então, determinou que o Estado do Peru concedesse uma bolsa de estudos superiores ou universitários. Essa bolsa deveria cobrir os custos da carreira profissional do Senhor Luiz Alberto Cantonal e os gastos de manutenção durante o período de estudos. Além disso, a bolsa deveria ser concedida para estudos em um centro de reconhecida qualidade acadêmica escolhido de comum acordo entre Estado e vítima. 

Nota-se que, no período em que ficou injustamente preso, o Senhor Cantonal teve negado o projeto de vida relacionado à construção de uma carreira profissional. A concessão da bolsa foi uma forma de reparação ao dano ao projeto de vida14.

conteúdo mínimo da dignidade humana - autonomia

3º CONTEÚDO MÍNIMO DA DIGNIDADE HUMANA: VALOR COMUNITÁRIO

O terceiro elemento da dignidade humana é a necessidade de se observar o valor comunitário. Trata-se de um elemento social, de modo que os contornos da dignidade devem ser moldados pelas relações da pessoa com outros indivíduos e com o mundo ao redor15

Nesse sentido, não há dúvida de que a liberdade religiosa constitui uma das manifestações possíveis da dignidade humana e da liberdade. Porém, mesmo a dignidade humana tem limites em valores comunitários de proteção à vida e à saúde. 

Em razão disso, segundo o Supremo Tribunal Federal, é constitucional o Decreto nº 65.563/2021 do Estado de São Paulo, que limitou a realização de atividades coletivas religiosas presenciais, durante o período de agravamento da COVID-1916.

A propósito desse julgamento, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e a União devem reunir esforços para que os direitos fundamentais sejam garantidos. Essa reunião de esforços nada mais do que o chamado federalismo cooperativo, incluindo, na hipótese, o direito à saúde pública17

Eis o valor comunitário da dignidade humana: ela não pode ser suprimida, mas, em algumas situações, é possível limitar direitos para que valores comunitários sejam atingidos. 

No exemplo citado, o STF não suprimiu o direito à religião, mas conformou tal direito ao valor comunitário de proteção à saúde pública – numa época em que estava em plena ascensão a grave epidemia da Covid-19. 

Eis outro assunto, também muito importante, em que o Supremo Tribunal Federal, embora sem afirmá-lo expressamente, acabou realçando o valor comunitário do princípio da dignidade humana.

Alguns municípios do Estado de Santa Catarina editaram decretos que dispensaram a exigência de vacina contra a Covid-19 para matrícula e rematrícula na rede pública de ensino. 

Segundo o Supremo Tribunal Federal, o direito de todos os brasileiros e brasileiras de conviver em um ambiente sanitariamente seguro sobrepõe-se a eventuais pretensões individuais de não se vacinar. Não bastasse, os direitos das crianças e dos adolescentes adquirem contornos de prioridade absoluta, conforme previsto na Constituição Federal e na legislação ordinária18

Além disso, o “Plano Nacional de Vacinação” determinou a inclusão da vacinação da Covid-19. Não pode o Município legislar dispensando a vacinação, sob pena de desrespeito à distribuição de competências legislativas. O modelo federativo previsto na CF/88 estipula a atuação colaborativa entre os entes políticos, de modo que o exercício de uma competência legislativa não pode tornar sem efeito ato legislativo da União19.

Em suma, o Supremo Tribunal Federal suspendeu decretos municipais que dispensavam a vacinação contra a Covid-19, nas hipóteses de matrícula e rematrícula em rede pública de ensino, pelos seguintes fundamentos: 

a) o direito individual de liberdade (não se vacinar) não pode sobrepor-se ao direito coletivo à segurança sanitária (direito coletivo à saúde); 

b) o princípio da prioridade absoluta dos direitos das crianças e dos adolescentes, previsto na Constituição Federal e na legislação ordinária, exige que referidos direitos prevaleçam mesmo diante de suposta liberdade individual de não se vacinar; 

c) o Município não pode sobrepor-se à competência legislativa nacional, por meio do qual se exige a vacinação obrigatória contra a Covid-SP (distribuição constitucional de competências).

Portanto, no conflito entre o direito à liberdade de não se vacinar e o direito de todas as pessoas à segurança sanitária, prevalece, de acordo com o STF, o segundo. O valor comunitário da dignidade humana, assim, exige que o direito individual se acomode aos valores de proteção à comunidade.

Eis, agora, caso, recolhido da Corte Interamericana, em que se mostra presente o valor comunitário da dignidade humana – agora como forma de modificação da categorização jurídica de um determinado direito.

No caso dos povos indígenas, as terras tradicionais têm relação próxima com os costumes, crenças, cultura, enfim, com a sobrevivência digna desses povos. A ligação dos indígenas com as terras tradicionais veicula um direito de propriedade coletiva, derivado do art. 21 da CADH que protege a propriedade privada20.  

Observa-se que o valor comunitário da dignidade humana serve para reconfigurar direitos. O direito à propriedade privada, previsto no art. 21 da CADH, é reconfigurado como direito à propriedade coletiva das terras tradicionais pelos povos tradicionais.

Em razão disso, pode-se dizer que o valor comunitário da dignidade humana apresenta ao menos duas consequências: a) a possiblidade de se limitar um direito individual para a proteção da comunidade (ex.: limitação da liberdade religiosa com o objetivo de proteger a saúde pública no epicentro da pandemia da Covid-19); obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes contra a Covid-19, para a matrícula e rematrícula na rede pública de ensino – em detrimento do direito individual de não se vacinar; b) reconfigura um direito individual, transformando-o, em determinadas hipóteses, em direito coletivo (ex.: direito de propriedade coletiva dos povos indígenas às terras tradicionais.

VALOR COMUNITÁRIO DA DIGNIDADE DA PESSOA

1 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 72. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
2 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 72. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
3 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 72. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
4 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, págs. 76 e 77. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
5 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletivo de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023 (Exceções Preliminares, Mèrito, Reparações e Custas), §§701 e 702.
6 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 77. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
7 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 78. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
8 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 81. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
9 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Rodríguez Pacheco e outra vs. Venezuela. Sentença de 1º de setembro de 2023 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §101.
10 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Rodríguez Pacheco e outra vs. Venezuela. Sentença de 1º de setembro de 2023 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §101.
11 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Rodríguez Pacheco e outra vs. Venezuela. Sentença de 1º de setembro de 2023 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §103.
12 Ou Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994).
13 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Rodríguez Pacheco e outra vs. Venezuela. Sentença de 1º de setembro de 2023 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §104.
14 CORTE INTERAMERICANA. Caso Cantoral Bonavides vs. Peru. Sentença de 3 de dezembro de 2001. Reparações e Custas. Série C, nº 88, §80.
15 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo, pág. 87. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
16 STF, Informativo nº 1012, de 16 de abril de 2021 – ADPF 811/SP, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgamento no dia 8/4/2021.
17 STF, Informativo nº 1012, de 16 de abril de 2021 – ADPF 811/SP, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgamento no dia 8/4/2021.
18 STF, Plenário, ADPF nº 1.123 MC-Ref-SC, Relator Ministro CRISTIANO ZANIN, julgamento virtual finalizado no dia 8.3.2024. Informativo STF nº 1127, de 15 de março de 2024.
19 STF, Plenário, ADPF nº 1.123 MC-Ref-SC, Relator Ministro CRISTIANO ZANIN, julgamento virtual finalizado no dia 8.3.2024. Informativo STF nº 1127, de 15 de março de 2024.
20 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Garífuna de San Juan e seus membros vs. Honduras. Sentença de 29 de agosto de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, §§ 90 a 94.