Trilhas Jurídicas

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – LINHAS GERAIS

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1. RELAÇÃO DO DIREITO E DE OUTROS SABERES PARA SE COMPREENDER A DIGNIDADE HUMANA

A humanidade pode ser vista a partir de fenômenos biológicos e culturais. O ser humano se realiza segundo o casamento entre os aspectos físicos e os aspectos que ele, ser humano, recolhe na relação com outras pessoas. 

Em termos biológicos, há várias disciplinas capazes de estudar o ser humano – a Medicina, a Psicologia, a Neurofisiologia, a Antropologia Física, a Genética etc.

Em termos culturais, os esforços são reunidos em torno da Sociologia, da Economia, do Direito, da Antropologia Social, da Psicologia Social etc. 

Por isso, se biologicamente o ser humano possui heranças genéticas que o prendem fisicamente a outros membros da família humana, culturalmente o ser humano apreende valores e padrões de comportamento a partir do grupo social em que se encontra inserido. 

Se, no aspecto físico, a Genética estuda como as características biológicas são passadas de geração para geração, no aspecto cultural temos, por exemplo, a Antropologia Cultural, que busca compreender o comportamento humano nas sociedades passadas, presentes e futuras. 

Se, em termos físicos, o ser humano encontra-se geneticamente pré-determinado, culturalmente o ser humano comporta-se conforme a aprendizagem e a comunicação recolhidos do grupo. No primeiro caso, o indivíduo encontra-se predeterminado à sua própria herança genética; no segundo caso, não há uma herança predeterminada, mas, sim, uma apreensão de elementos que provêm da cultura, da relação com outros seres humanos do grupo.

Quanto ao segundo aspecto, por isso, é correto afirmar que “cultura é o sistema integrado de padrões de comportamento apreendidos, os quais são características dos membros de uma sociedade e não o resultado de herança biológica”¹.
Assim, a identidade do ser humano se constrói a partir de aspectos físicos e biológicos e, também, de aspectos sociais e culturais. 

No conhecido poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto tenta definir quem é o Severino: O meu nome é Severino,/ não tenho outro de pia. Até aqui, temos o aspecto físico, biológico, do Severino. Pia é batismo.

Mas o poema avança: Como há muitos Severinos,/que é santo de romaria,/deram então de me chamar Severino de Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães chamadas Maria,/ fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias….

Nota-se que o Severino anterior, pessoal, identificável, confunde-se com vários outros Severinos que existem na realidade social do Nordeste brasileiro. A cultura, no caso, faz apagar a identidade do Severino, esquecido nas relações econômicas e sociais dessa região do Brasil.

De forma magistral, João Cabral de Melo Neto tenta recuperar a identidade do Severino. Para tanto, é preciso que o interlocutor, ou seja, a cultura, o grupo social, acolha Severino. Tanto é verdade que, ao final, para se saber a história de Severino, é preciso que a presença de Severino emigre para o interlocutor: Mas, para que me conheçam/ melhor Vossas Senhorias? E melhor possam seguir/ a história de minha vida/ passo a ser o Severino/ que em vossa presença emigra.

Daí se pode dizer que a identidade do ser humano se constrói da conjugação de aspectos físicos, biológicos e psicológicos com o contexto social em que o ser humano esteja inserido².

A partir da identidade é possível traçar as primeiras linhas gerais sobre a dignidade humana.

2. ORIGEM DA PALAVRA DIGNIDADE E CONCEITO JURÍDICO

Dignidade provém do latim dignitas, isto é, daquilo que tem valor, e do latim dignus, isto é, daquilo que é valioso, valoroso.

Quando se fala em dignidade humana, deve-se reportar àquilo que é valoroso, valioso no ser humano.

Ora, aquilo que vale, que é valioso no ser humano é exatamente aquilo que define o ser humano, aquilo que constitui a própria essência do humano, isto é, a identidade do ser humano.

Daí que a descoberta da dignidade humana pressupõe saber como se constrói a identidade da pessoa

Isso nos põe na difícil tarefa de compatibilizar os aspectos físicos, biológicos e psicológicos do ser humano, com o contexto social, político e cultural. 

Em razão disso, pode-se dizer que o princípio da dignidade humana é a contribuição normativo-valorativa do Direito na proteção jurídica dos caracteres físicos, biológicos e psicológicos do ser humano, dentro de (e por meio de) um contexto social, político e cultural. 

Decompondo o instituto, notamos a presença das seguintes partes: a) contribuição normativo-valorativa: o princípio da dignidade humana emana normas, isto é, preceitos de observância obrigatória; valores, isto é, algo que vale em relação a alguma coisa, um princípio que tem por objetivo a proteção do ser humano; b) preservação dos caracteres físicos, biológicos e psicológicos do ser humano, dentro de (e por meio de) um contexto social, político e cultural: o princípio da dignidade humana impõe que o Direito se engaje em interferir na realidade normativa-social, para que essa realidade preserve a identidade, a essência do ser humano. Quando se fala em interferir na realidade normativo-social, está-se afirmando que o princípio da dignidade humana produz reflexos nas demais normas do sistema jurídico e, também, na realidade social, econômica, política. 

Nota-se dessas considerações que, a partir do princípio da dignidade humana, o Direito torna-se um centro irradiador de normas e valores. Assim, as normas jurídicas devem engajar-se para preservar a identidade física, biológica e psicológica do ser humano no interior da cultura.

Nesse cenário, caso a cultura, isto é, a sociedade, nos aspectos sociais, políticos e econômicos, oprima o ser humano, o Direito entra para, dentro das possibilidades normativas, contribuir para que o cultural respeite o individual.

Saber a origem da dignidade humana é conhecer as linhas gerais desse princípio relevantíssimo para o Direito.

É importante ressaltar que o princípio da dignidade humana relaciona-se, de modo muito próximo, com os direitos humanos. Para conhecer as linhas gerais sobre os direitos humanos, consultar CONCEITO DE DIREITOS e CONTEÚDO DOS DIREITOS HUMANOS.

3. INFLUÊNCIA DA DIGNIDADE HUMANA NA RESOLUÇÃO DE DIVERSOS PROBLEMAS JURÍDICOS

Para o Direito, o social existe para a promoção do ser humano, e as grandes balizas normativas que visam a alcançar esse objetivo estão reunidas no princípio da dignidade humana. 

Tomemos como exemplo a situação da mulher. Estudiosos revelam que a cultura ocidental é responsável pelo genocídio das mulheres³. O princípio da dignidade humana vem, então, como o epicentro do sistema jurídico, para engajar todas as normas jurídicas com o objetivo de, dentro das possibilidades do Direito, alterar a realidade social que oprime a mulher.

Como o princípio da dignidade humana está no epicentro, no núcleo do sistema jurídico, esse princípio serve de orientação e fundamento de validade para todas as normas jurídicas, assim nacionais como internacionais.

Nota-se que o princípio da dignidade humana reúne as normas jurídicas nacionais e internacionais para a proteção do ser humano. As normas jurídicas que cumprem com esse papel são constitucionais e convencionais, isto é, observam a Constituição brasileira e os tratados de direitos humanos pertinentes à matéria em debate.

Vejamos um caso bem interessante. Em havendo risco à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha permite, em determinadas situações, que o Delegado de Polícia4 ou, mesmo, outro Policial5 afaste, imediatamente, do lar o agressor. O (a) juiz (a) deverá ser comunicado no prazo máximo de 24 horas, para decidir sobre a manutenção ou revogação da medida aplicada, devendo dar ciência concomitantemente ao Ministério Público6.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. O argumento principal foi de que o tema envolve reserva de jurisdição. Logo, só os Magistrados, e não os membros da Polícia, podem determinar que o agressor se afaste do lar.

O Supremo Tribunal Federal entendeu, porém, que os dispositivos legais não violam a Constituição, ao contrário, respeitam e protegem a dignidade da mulher. Como o caso deve ser levado, em até 24 horas, ao conhecimento do Magistrado, não há ofensa à clausula de reserva de jurisdição7.

O Ministro Relator, Alexandre de Moraes, entendeu que a medida é razoável, proporcional e se compatibiliza com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no que se refere à proteção da mulher.

Já o Ministro André Mendonça explicou que o dispositivo legal não afeta a reserva de jurisdição. Isso porque o Poder Judiciário deve ser comunicado no prazo de 24 horas a respeito do afastamento8.

É importante notar que o Ministro Alexandre de Moraes sustenta que o dispositivo legal obedece a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, em matéria de proteção da mulher. 

Observa-se, aí, um diálogo entre uma norma jurídica interna e normas jurídicas internacionais – todas destinadas à proteção do ser humano. 

Assim, o princípio da dignidade humana unifica a normatividade interna e internacional, conferindo unidade ao sistema normativo.

Uma questão de muita importância prática e teórica consiste em saber se apenas o Policial Civil, ou se também o Policial Militar poderá determinar o afastamento do agressor. 

Para uma primeira corrente, apenas o Policial Civil poderá determinar o afastamento. Isso porque é a Polícia Civil que recebeu da Constituição a tarefa investigatória. Assim, o Policial Militar não reúne em suas atribuições a prerrogativa de investigar, de modo que ele, Policial Militar, não detêm os elementos probatórios para saber se, no caso, a mulher está sendo vítima de violência. 

Em abono à primeira corrente, podemos afirmar, ainda, que o art. 12-C, inciso II, reportou-se ao Delegado de Polícia, para, só depois, no inciso III, fazer menção a Policial. Policial, então, seria alguém subordinado ao Delegado de Polícia.

Já, para uma segunda corrente, configura dever da Polícia Militar, na atividade de prevenir crimes, determinar o afastamento do lar, conferindo densidade à normativa nacional e internacional de proteção da mulher.

Entendemos que, a rigor, é ao Policial Civil que se entrega, em regra, o dever de afastar do lar o agressor. Apenas a Polícia Civil detém as informações necessárias para concluir pela existência de violência contra a mulher.

Essa regra deve ser observada, no caso de violência moral ou psicológica contra a mulher. Isso porque a verificação dessa espécie de violência exige uma apuração mais detalhada, não possuindo a Polícia Militar, em geral, atribuição técnica para exercer a atividade investigatória.

Só será possível que a Polícia Militar retire do lar o agressor no caso de violência física, quando, então, não será preciso aprofundar-se sobre o material probatório. A hipótese exige atuação rápida e firme, o que demanda atuação da Polícia Militar, que está presente no calor dos fatos e no momento da agressão física.

Em um possível diálogo jurisdicional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos poderia complementar o julgamento do Supremo Tribunal Federal, permitindo-se, assim, ainda que em hipótese excepcional, a atuação da Polícia Militar no caso.

É que, de acordo com o entendimento atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos, todos os órgãos e instituições estatais têm o dever de promover o controle de convencionalidade das leis. Em outras palavras, todo o aparato do Estado tem que verificar se as leis estão de acordo com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado. Essa tarefa não é apenas do Poder Judiciário e dos demais órgãos ligados à administração da Justiça (Procuradorias, Advocacia, Ministério Público, Defensorias Públicas etc.)9

Nesse sentido, dentro de sua atribuição própria, a Polícia Militar tem o dever de afastar do lar o agressor, no caso de violência física constatável de plano.

Assim, em regra, é o Policial Civil que deve afastar do lar o agressor, nas hipóteses autorizadas por lei (município que não é sede de Comarca). Em hipótese excepcional, quando constatável de plano a agressão – e isso poderá ocorrer nos casos de violência física -, poderá, também, a Polícia Militar cumprir essa tarefa.

Essa interpretação, cremos, confere efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, que exige a mobilização de todo o aparato estatal com o objetivo de se alcançar a maior proteção possível à mulher vítima de violência no contexto doméstico e familiar.

Em suma, na nossa perspectiva de dignidade humana, ressaltamos a questão da identidade do ser humano. Referida identidade é alcançável, na medida em que se conjuga – aos aspectos físicos, biológicos e psicológicos do ser humano -, o contexto social, cultural, econômico e político.


1E. Adamson Hoebel e Everett L. Frost. Antropologia Cultural e Social, pág. 4. 1ª ed. 8ª reimpressão. 2006.
2Ana Mercês Bahia Bock, Odair Furtado e Maria de Lourdes Trassi Teixeira. Psicologias. Uma Introdução ao Estudo da Psicologia, pág. 203 a 207. 13ª ed. 14ª tiragem. 1999.
3“Primeiro, é preciso constatar, quando se fala de feminicídio hoje, que a Renascença, a flor da cultura ocidental entre os séculos XV e XVIII, matou por volta de cem mil mulheres na Europa toda, torturadas, enforcadas ou queimadas simplesmente porque elas eram um pouco diferentes e certamente um pouco mais autônomas do que os vilarejos em que viviam estavam dispostos a aguentar. Esse é um fenômeno que realmente não pode ser esquecido. Foi quase um projeto de genocídio de gênero, por assim dizer.“Segundo, a misoginia entra na cultura ocidental por duas grandes figuras: Pandora, na mitologia grega, e depois Eva. <Pandora> foi a primeira mulher que existiu, segundo a mitologia grega, e que, por sua curiosidade, deixou escapar todos os males do mundo. Nossa cultura é construída, então, em cima da ideia de que a mulher é a representante do mal (ou a amiga do demônio). Tudo o que o homem tenta, eventualmente, proibir em si mesmo, inclusive o desejo sexual, é encarnado pela mulher, como grande tentadora. Na cultura ocidental, a figura feminina é uma projeção dos desejos que o home não conseguiria controlar. Ou seja, é graças a ela que o home pode justificar o mal que tem em si. E, então, ele domina, enfia no porão, tortura, queima, enforca, afoga, mata a mulher. A cultura ocidental – não é piada – funcionou assim” (Contador Calligaris. In: Maria Homem e Contador CAlligaris. Coisa de menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo, págs. 16 e 17. 2019.
4Quando o Município não for sede de comarca.
5Quando o Município não for sede de comarca e não houver Delegado de Polícia disponível no momento da informação sobre a violência.
6Confira-se o art. 12-C, incisos II e III, e §1º, da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006): Art. 12-C.  Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: (Redação dada pela Lei nº 14.188, de 2021): I – pela autoridade judicial; (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019): II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019): III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019); § 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019).
7STF, ADI 6138, Plenário, Relator Ministro ALEXANDRE DE MORAES, julgamento em 23/3/2022.
8O resumo dos argumentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal foi feito por: Sérgio Rodas. Violência Doméstica. Supremo valida possibilidade de policial conceder medida protetiva a mulher. In: Consultor Jurídico. 23/3/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-23/stf-valida-possibilidade-policiais-concederem-medidas-protetivas. Acesso: 25/3/2022.
9CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016.