LINHAS GERAIS
A expressão direito a ter direitos foi cunhada por Hannah Arendt. A compreensão depende de uma explicação teórica.
O ser humano, isolado, continua, é claro, sendo ser humano. Porém, ao separar-se do espaço público e de outras pessoas, ele não consegue realizar os próprios direitos. A dignidade do ser humano depende das relações com outros seres humanos no espaço público. A ação política revela, para a comunidade, a singularidade do ser humano. Sem isso, o ser humano deixa de fazer parte da história, não há memória nem existência registradas.
Assim, o indivíduo, sozinho, perde a dignidade humana, porque tudo o que faz ou deixa de fazer perde a importância. Os atos do indivíduo passam a ser algo que nunca existiu; o indivíduo se despe da importância da fala e do relacionamento com outras pessoas.
Confira-se: CONTEÚDO MÍNIMO DA DIGNIDADE HUMANA; DIGNIDADE HUMANA – LINHAS GERAIS.
É o que se passa com as minorias étnicas discriminadas e com os apátridas. Eles se encontram excluídos das relações humanas que lhes assegurariam os direitos humanos. São pessoas privadas totalmente de direitos. Ao serem privados da qualidade de sujeitos de direitos, eles acabam privados do papel de seres humanos. Seus atos e suas opiniões – embora eles os tivessem – perdem total importância.
Por isso, pouco importa o jusnaturalismo, isto é, a concepção de que os direitos humanos fazem parte da natureza humana. Sem a participação no espaço público e na convivência com o tecido das relações sociais, o indivíduo perde o direito de se expressar, o direito à saúde, os direitos de cidadania, enfim, a dignidade peculiar dos seres humanos.
Os direitos de um ser humano isolado são os direitos de um ser humano numa ilha: as palavras são lançadas ao vento e depois esquecidas.
Assim, quando um indivíduo é expulso de uma comunidade, não há mais nenhuma autoridade para proteger os direitos desse indivíduo, tampouco alguma instituição para garantir referidos direitos.
Isso revela que os direitos, antes inerentes à natureza humana (jusnaturalismo), tornam-se inaplicáveis, perdendo o sentido de verdadeiros direitos humanos.
Desse modo, a expulsão de uma comunidade implica a perda de todos os direitos humanos, de modo que a perda da comunidade traz como consequência a perda da dignidade. Daí, segundo Hannah Arendt, os direitos de cada indivíduo, antes mesmo de serem enumerados nas declarações de direitos, são o direito a ter direitos, isto é, o direito de a pessoa pertencer a uma comunidade que garanta os direitos dessa pessoa.
Ganha, então, relevo a ideia de que os direitos humanos dependem de uma construção coletiva, a partir de uma humanidade comum, que englobe todos os seres humanos.
A comunidade, então, transforma-se num ambiente de construção dos direitos humanos, os quais passam a ser concretizados a partir da ação política exercida numa comunidade.
A comunidade, portanto, é o ambiente que propicia o fortalecimento dos laços humanos, respeitando-se, sempre, é claro, a singularidade dos diversos grupos humanos (BRITO, Renata Romolo. Os direitos humanos na perspectiva de Hannah Arendt. Revista Ética e Filosofia Política, volume 9 nº 1, junho/2016.
A Primeira Guerra Mundial produziu os deslocados do mundo, os displaced people – minorias nacionais, linguísticas, étnicas e religiosas, expelidas, conforme revelou Hannah Arendt, da trindade Povo-Estado-Território, por força da denegação do pluralismo e da tolerância. Essas pessoas deixaram de ter um lugar dentro das sociedades politicamente organizadas, tornando-se indesejáveis em todo o lugar que entrassem. Essa situação derivou dos nacionalismos xenófobos, bem assim dos cancelamentos em massa produzidos pela antiga União Soviética e pela Alemanha nazista, norteadas por intolerância ideológica e racista (LAFER, Celso. Direito Internacional. Um percurso no Direito no Século XXI, volume 2, págs. 15 e 16. 2015).
Em razão do sectarismo, do fanatismo e da xenofobia, os deslocados do mundo tornaram-se vítimas da descartabilidade nos campos de concentração. Daí, segundo Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído – um construído político de convivência coletiva. Essa convivência implica a partilha da terra entre os seres humanos, configurando o direito à hospitalidade universal (LAFER, Celso. Direito Internacional. Um percurso no Direito no Século XXI, volume 2, pág. 16. 2015).
Assim, o primeiro direito é o direito a ter direitos, isto é, o direito a fazer parte de uma comunidade que garanta, efetivamente, os direitos humanos, incluindo o direito à igualdade e à não discriminação.
O DIREITO A TER DIREITOS NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: O FORTALECIMENTO DA DEFENSORIA PÚBLICA
Conforme visto, o direito a ter direitos impõe que a comunidade respeite e garanta os direitos das pessoas. Para tanto, é preciso que haja instituições encarregadas dessa proteção.
A propósito, a Defensoria Pública, no Brasil, traduz instituição essencial na orientação jurídica e promoção de direitos dos desassistidos e necessitados, os quais constituem parcela considerável da população brasileira.
Em um caso bem interessante, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o Poder Judiciário, em uma ação civil pública, poderia determinar que fosse designado um Defensor Público para a defesa de um desassistido, numa Comarca onde não estivesse instalada a Defensoria Pública.
Nesse importante julgamento, segundo assinalou o Ministro Relator, CELSO DE MELLO, assiste a todas as pessoas – principalmente àquelas que nada têm e de que tudo necessitam – uma prerrogativa básica que permita a viabilização dos demais direitos e liberdades.
Nesse sentido, pontuou o Ministro CELSO DE MELLO, “torna-se imperioso proclamar, por isso mesmo, que toda pessoa tem direito a ter direitos (grifei), assistindo-lhe, nesse contexto, a prerrogativa de ver tais direitos efetivamente implementados em seu benefício, o que põe em evidência – cuidando-se de pessoas necessitadas (CF, art. 5º, LXXIV) – a significativa importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública” (Voto do Ministro Relator CELSO DE MELLO, no seguinte julgamento: STF, 2ª Turma, Agravo Regimental no RE 763667/CE, julgamento no dia 22.10.2013).
Por isso, cumpre ao Estado aparelhar a Defensoria Pública, de modo que esta última cumpra a missão constitucional de que é incumbida.
Assim, todos têm direito a ter direitos, o que só é possível, quanto às pessoas carentes e desassistidas, que exista todo um aparato estatal por trás disso, como o fortalecimento da Defensoria Pública. Quanto à relação entre o direito a ter direitos e a Defensoria Pública, confira-se o brilhante voto do então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello: STF, Plenário, ADI 2.903, julgamento no dia 1.12.2005, DJe de 19;9.2008. Voto disponível em: https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=1376.
Em outro caso também muito interessante, o Supremo Tribunal Federal entendeu serem constitucionais as normas legais que atribuem à Defensoria Pública a prerrogativa de requisição de documentos, informações e esclarecimentos.
Em seu voto, depois de posicionar a Defensoria Pública no papel de instituição fundamental para garantir o acesso à justiça às pessoas hipossuficientes, o Ministro Relator, EDSON FACHIN, pontuou o seguinte: “(…) reconhecer a atuação da Defensoria Pública como um direito que corrobora para o exercício de direitos (grifei) é reconhecer sua importância para um sistema constitucional democrático em que todas as pessoas, principalmente aquelas que se encontram situadas à margem da sociedade, possam usufruir do catálogo de direitos e liberdades previstos na Constituição Federal” ( STF, ADI 6.852 e outras, Plenário, Relator Ministro Edson Fachin, fevereiro de 2022).
Em complemento, o Ministro Edson Fachin associou a prerrogativa de requisição da Defensoria à concretização do direito às garantias judiciais previsto no art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Em outra ação de controle concentrado, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade de lei estadual que previa o poder de requisição da Defensoria Pública. O Ministro Relator, ALEXANDRE DE MORAES, explicou que a Constituição Federal posiciona a Defensoria Pública no rol das funções essenciais à Justiça.
Além disso, entendeu o Ministro, a EC nº 45/2004 fortaleceu as Defensorias Públicas Estaduais, as quais passaram a contar com autonomia funcional e administrativa – garantias posteriormente estendidas às Defensorias da União e do Distrito Federal pela EC nº 74/2013.
Depois, veio a EC nº 80/2014, que estabeleceu para as Defensorias Públicas os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional. Para que as relevantes funções da Defensoria sejam asseguradas, é preciso supor uma série de poderes (teoria dos poderes implícitos), dentro de um quadro de adequação, razoabilidade e proporcionalidade. O poder de requisição situa-se nesse quadro, reconheceu o Supremo Tribunal Federal (STF, ADI nº 6875, Plenário, Relator Ministro ALEXANDRE DE MORAES, julgamento no dia 21/2/2022).
Cumpre saber se a Defensoria Pública da União, intervindo em ação de controle concentrado de constitucionalidade como pode atuar na qualidade de custos vulnerabilis, e não como simples amicus curiae. Em caso positivo, a Defensoria Pública da União poderia, numa ADFP ou em uma ADI por exemplo, interpor todo e qualquer incidente processual e formular requerimentos autônomos (como, por exemplo, medida cautelar, produção de provas), interpor recursos, fazer sustentação oral do mesmo modo que as partes do processo.
O Supremo Tribunal Federal tem admitido a intervenção da Defensoria Pública da União em ações de controle concentrado de constitucionalidade. O objetivo é o de fortalecer a defesa de interesses coletivos e difusos de grupos que, em outras condições, não teriam voz. Para a atuação como custos vulnerabilis em ações de controle concentrado de constitucionalidade, é preciso observar os seguintes requisitos de admissibilidade: a) vulnerabilidade dos destinatóarios da prestação jurisdicional; b) elevado grau de desproteção judiciária dos interesses; c) formulação do requerimento por defensores com atribuição; d) pertinência da atuação com uma estratégia de cunho institucional (STF, ADPF 709 ED, Decisão monocrática, Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, DJ 17.10.2023).
Nesse sentido, a Defensoria Pública da União, em ação de controle concentrado, pode atuar como custos vulnerabilis, na defesa dos direitos das comunidades indígenas (STF, ADPF 709 ED, Decisão monocrática, Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, DJ 17.10.2023).
A propósito, o custos vulnerabilis nada mais é do que uma intervenção da Defensoria Pública, em nome próprio, para a defesa dos direitos dos necessitados e concretização da missão constitucional de tutela dos direitos humanos. A Defensoria Pública, então, traz aos autos novas experiências e contribuições, de forma que os grupos vulnerabilizados possam ser ouvidos. Nessa hipótese, a Defensoria atua como uma verdadeira parte, sem que se imponham as limitações próprias do amicus curiae (STF, ADPF 709 ED, Decisão monocrática, Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, DJ 17.10.2023).
A função de custos vulnerabilis é uma prerrogativa implícita para que a Defensoria Pública cumpra sua missão constitucional, ou seja, a defesa coletiva dos necessitados e a promoção dos direitos humanos (CF, art. 134, caput) (STF, ADPF 709 ED, Decisão monocrática, Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, DJ 17.10.2023).
Daí que não basta conceder à Defensoria Pública a prerrogativa de participar, nos processos de controle concentrado de constitucionalidade, como simples amicus curiae. Isso porque a instituição não atua simplesmente para fornecer subsídios para o julgamento da lide – papel do amicus curiae. A intervenção da Defensoria Pública vai muito além, porque visa a defender os direitos dos grupos vulnerabilizados. Não faz sentido, portanto, considerar que a Defensoria atue como simples amicus curiae, cujas funções estão delimitadas no art. 138 do Código de Processo Civil, funções, essas, que são assinaladas pelo Relator (CPC, art. 138, §2º). Daí a necessidade de conferir, à Defensoria Pública, na defesa dos necessitados, poderes equivalentes aos das partes tradicionais do processo, entre os quais estão a realização de requerimentos autônomos (ex.: medida cautelar, provas), a interposição de recursos, a apresentação de sustentação oral (STF, ADPF 991/DF ED, Decisão monocrática, Relator Ministro EDSON FACHIN, decisão proferida no dia 12.8.2024).
Nesse sentido, é possível que a Defensoria Pública intervenha em ação de controle concentrado de constitucionalidade, na defesa de povos indígenas isolados e de recente contato, dada a vulnerabilidade desses povos. Essa atuação se dá como custos vulnerabilis, de modo que se confere à Defensoria Pública faculdades processuais semelhantes àqueles conferidos às partes no processo (STF, ADPF 991/DF ED, Decisão monocrática, Relator Ministro EDSON FACHIN, decisão proferida no dia 12.8.2024).
Por sua vez, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal, admitiu a legitimidade da Defensoria Pública para formular pedido de suspensão às presidências dos tribunais. Assim, essa legitimidade é possível nas hipóteses em que o interesse público primário e a ordem pública abrangerem, também, os interesses da coletividade vulnerável e os direitos humanos institucionalmente protegidos pelo Estado Defensor (STF, ADPF 991/DF ED, Decisão monocrática, Relator Ministro EDSON FACHIN, decisão proferida no dia 12.8.2024). Sobre o tema, confira-se o brilhante artigo do meu estimado amigo Defensor Público Doutor Maurílio Casas Maia: MAIA, Maurilio Casas. Defensoria pode usar pedido de suspensão para defender vulneráveis, diz STF. Consultor Jurídico, 24 de agosto de 2024, 6h32. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-24/defensoria-pode-usar-pedido-de-suspensao-para-defender-vulneraveis-diz-stf/).
Nos termos do art. 4º da Lei nº 8.437/1992, os pedidos de suspensão de tutelas provisórias podem ser formulados pela pessoa jurídica de direito público interessada e pelo Ministério Público. Não há menção expressa à Defensoria Pública.
Contudo, segundo o voto do Relator, Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, a Defensoria Pública pode requerer a suspensão, quando o interesse público defendido esteja ligado às competências constitucionais da Defensoria Pública. Nesse sentido, referida instituição poderá formular pedido de suspensão: a) na defesa de interesse institucional próprio; b) na tutela dos necessitados, atuando como custus vullnerabilis, o que é coerente com a função da Defensoria de promover os direitos humanos e a defesa das pessoas necessitadas (CF/88, art. 134). Confira-se o voto do Ministro Relator, LUÍS ROBERTO BARROSO: STF, Plenário, Referendo em Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória – STP – nº 1.007, Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, Sessão Virtual de 28.6.2024 a 6.8.2024, publicação em 19/8/2024.
Houve, portanto, uma revirada jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal. Isso porque a Corte Suprema conferia uma interpretação gramatical ao art. 4º da Lei nº 8.437/1992, para rejeitar a legitimidade da Defensoria Pública em formular pedidos de suspensão de tutelas provisórias.
A nova posição do Supremo Tribunal Federal choca-se com posição anterior do Superior Tribunal de Justiça, o qual, no SLS 3.156/AM, negou legitimidade defensorial para o mesmo incidente.
A Defensoria Pública, portanto, insere-se num projeto amplo de uma comunidade política organizada para garantir os direitos humanos. Essa comunidade política organizada é que viabiliza o direito a ter direitos.
É interessante que o direito a ter direitos é muito mais do que o reconhecimento da soberania estatal absoluta. Não basta que haja uma comunidade estatal, mas é preciso que a comunidade estatal garanta direitos.
O DIREITO A TER DIREITOS PERANTE A CORTE INTERAMERICANA E AS(OS) DEFENSORAS(OS) PÚBLICAS(OS) INTERAMERICANAS(OS)
Como o direito a ter direitos vai além dos limites da soberania dos Estados – tendo em conta que muitos Estados deixam de proteger os direitos – nota-se que o direito a ter direitos acaba tendo uma relação muito próxima com o Direito Internacional dos Direito Humanos.
É que, para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a dignidade humana é tema que não se esgota na soberania estatal. Trata-se de assunto que importa à comunidade internacional.
No sistema regional interamericano de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é que, na grande maioria das vezes, propõe demandas perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O indivíduo não pode fazê-lo.
Proposta a demanda, aí, sim, poderá o indivíduo participar do processo, apresentando solicitações, argumentos e provas. Esse direito de o indivíduo (vítima, familiar ou representante legal) apresentar solicitações, argumentos e provas, num processo já instaurado perante a Corte Interamericana, é denominado de locus standi.
O locus standi é o direito de o indivíduo participar da demanda já proposta na Corte Interamericana. A partir de uma reforma no Regulamento da Corte Interamericana, em 2001, o indivíduo poderá participar de todas as etapas do procedimento, no que se refere aos processos instaurados por violação aos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. É possível, portanto, num processo já instaurado pela Comissão Interamericana, que o indivíduo proponha provas, solicitações e argumentos, para reforçar inclusive aquilo que já foi apresentado pela Comissão. Contudo, o indivíduo ainda continua sem o direito de propor demanda, diretamente, perante a Corte Interamericana. Em outras palavras, o indivíduo continua sem o jus standi, isto é, sem a faculdade de ajuizar demanda na Corte Interamericana. Diverso se passa no sistema regional europeu, em que qualquer pessoa, mesmo que não residente nos países submetidos à Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), poderá propor demanda diretamente perante a Corte Europeia de Direitos Humanos. Por isso se diz que, no sistema regional europeu de direitos humanos, a pessoa possui o jus standi, ao passo que, no sistema regional interamericano, o indivíduo só conta com o locus standi.
Como, então, o indivíduo pode realizar, com efetividade, o locus standi, na Corte Interamericana, num contexto maior de direito a ter direitos no sistema regional interamericano de direitos humanos?
É que não basta reconhecer ao indivíduo o direito de participar dos processos instaurados na Corte Interamericana. É preciso que se conceda à pessoa os meios necessários para que o direito a participar do processo possa ser efetivado.
É interessante notar que, antes, quando o indivíduo não podia nem mesmo participar do processo já instaurado perante a Corte Interamericana, a Comissão Interamericana atuava como representante processual dos peticionários.
Logo depois, quando o indivíduo passou a ter o direito de participar do processo judicial já iniciado pela Comissão, a representação processual passou para os (as) Advogados (as) ou Organizações Não-Governamentais.
O problema é que muitas das vítimas são pessoas hipossuficientes, sem representação processual alguma.
Surge, então, a partir de uma reforma em 2010 no Regulamento da Corte Interamericana, a figura do Defensor Público Interamericano. Assim, a Corte poderá nomear um Defensor Público Interamericano ao indivíduo (vítima, familiares ou representantes) sem representação processual.
A propósito, nos termos do art. 37 do Regulamento da Corte Interamericana, “em caso de supostas vítimas sem representação legal devidamente credenciada, o Tribunal poderá designar um Defensor Interamericano de ofício que as represente durante a tramitação do processo”.
Para que o acesso ao Defensor Público Interamericano de Direitos fosse implementado, a Corte Interamericana firmou, em 2009, um acordo com a Associação Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF). Por meio desse acordo, a Corte Interamericana pode nomear um Defensor Público dos Estados-membros da referida associação. Assim, esse Defensor Público acompanha os casos em tramitação na Corte Interamericana. Já sob a nova regulamentação, foram prolatadas as duas primeiras sentenças da Corte Interamericana, com a presença de Defensores Públicos Interamericanos (DPIs): Caso Furlan e Familiares vs. Argentina e Caso Mohammed vs. Argentina (2012) (MACHADO, Isabel Penido de Campos. Defensores Públicos Interamericanos: novos horizontes de acesso à justiça. In: Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Jornal da Escola Superior da Defensoria Pública da União. 1º semestre de 2017. E. nº 8. Ano 3, pág. 2).
Um dos princípios substanciais da Hermenêutica dos Direitos Humanos, conforme veremos oportunamente, é o princípio da preservação dos instrumentos garantidos dos direitos humanos.
Segundo referido princípio, é preciso assegurar a existência e subsistência de todos os mecanismos institucionais destinados à proteção dos direitos humanos. De nada adianta a previsão normativa dos direitos humanos, sem os instrumentos necessários para que esses direitos sejam assegurados. As prerrogativas da Defensoria Pública – como a de requisição de documentos, informações e esclarecimentos – realizam o princípio referido.
O direito a ter direitos é a possibilidade de se fruir dos direitos no seio de uma comunidade organizada. Não basta ter direitos, sem uma comunidade que os garanta.
Já o princípio da preservação dos órgãos e instituições garantidores dos direitos humanos significa a vedação ao Estado de suprimir ou enfraquecer os órgãos e instituições que têm como competência ou atribuição assegurar a proteção dos direitos humanos.
Se o direito a ter direitos é uma concepção ideológica genérica, o princípio da preservação dos órgãos e instituições garantidores dos direitos humanos é uma das maneiras pelas quais o direito a ter direitos pode concretizar-se.
Daí a relação entre os dois.
O DIREITO A TER DIREITOS SOB A PERSPECTIVA ATUAL DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: A PERSEGUIÇÃO SISTEMÁTICA A DEFENSORAS (ES) DE DIREITOS HUMANOS
As defensoras e os defensores de direitos humanos são pessoas ou coletivos que lutam pela concretização dos direitos humanos. É a sociedade civil organizada que materializa o direito a ter direitos ou o direito de defender direitos.
Não só as instituições oficiais (Defensoria Pública, Ministério Público) exercem o papel de, como representantes das pessoas desfavorecidas e do povo, viabilizar o direito a ter direitos. Também o fazem pessoas e organizações não oficiais.
Pela primeira vez, no dia 18 de outubro de 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a responsabilidade internacional de um Estado por violação ao direito de defender direitos humanos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas).
Em outras palavras, é a primeira vez, de forma explícita, que a Corte Interamericana reconhece o direito a defender direitos como direito autônomo. Nesse sentido, cabe ao Estado facilitar o direito a defender direitos. Para tanto, o Estado deve fornecer um entorno seguro a defensores de direitos humanos, de modo que sejam afastadas hostilidades, ameaças, perseguições, intimidações e violência (PIOVESAN, Flávia. In: MARTINS, Elisa. Corte IDH condena Colômbia por perseguição sistemática a defensores de direitos Humanos. Jota, 25/3/2024. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/direitos-humanos/corte-idh-condena-colombia-por-perseguicao-sistematica-a-defensores-de-direitos-humanos-25032024).
Embora se trate de uma garantia largamente mencionada nos precedentes da Corte Interamericana, o direito a defender direitos se revelou, no caso julgado em outubro de 2023, um caráter inédito ao consolidar a judiciabilidade do direito a defender direitos humanos (MUDROVITSCH, Rodrigo. Voto concorrente, §24, proferido no seguinte julgamento: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Ou seja, o direito de defender direitos também tem proteção judicial.
Entendeu-se que o Estado colombiano é responsável por várias ações clandestinas de inteligência, intimidação e violência contra os membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo”. Referida Organização não Governamental se dedica à defesa e à promoção dos direitos humanos na Colômbia. Atua, mais propriamente, representando familiares de pessoas desaparecidas e/ou assassinadas pelo Estado ou por grupos paramilitares e outras vítimas de agentes estatais ou de terceiros com a conivência do Estado (MARTINS, Elisa. Corte IDH condena Colômbia por perseguição sistemática a defensores de direitos Humanos. Jota, 25/3/2024. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/direitos-humanos/corte-idh-condena-colombia-por-perseguicao-sistematica-a-defensores-de-direitos-humanos-25032024).
Segundo a Corte Interamericana, tais violações ocorrem desde os anos 1990 na Colômbia. Tratava-se de atividades de inteligência que agentes praticavam não apenas contra o os membros do coletivo de advogados, mas, também, contra os familiares desses membros. Foram mantidas em sigilo diversas informações, como dados pessoais sigilosos das vítimas, as quais nunca tiveram acesso a tais registros (MARTINS, Elisa. Corte IDH condena Colômbia por perseguição sistemática a defensores de direitos Humanos. Jota, 25/3/2024. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/direitos-humanos/corte-idh-condena-colombia-por-perseguicao-sistematica-a-defensores-de-direitos-humanos-25032024).
Vários foram os direitos tidos por violados, segundo expressou a Corte Interamericana: vida, integridade pessoal, vida privada, liberdade de pensamento e de expressão, autodeterminação informativa, conhecimento da verdade, honra, garantias judiciais, proteção judicial, liberdade de associação, circulação e residência, direitos da infância e direito de defesa dos direitos humanos (MARTINS, Elisa. Corte IDH condena Colômbia por perseguição sistemática a defensores de direitos Humanos. Jota, 25/3/2024. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/direitos-humanos/corte-idh-condena-colombia-por-perseguicao-sistematica-a-defensores-de-direitos-humanos-25032024).
A propósito, nesse julgamento, a Corte Interamericana destacou que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê o direito autônomo à autodeterminação informativa. Consiste esse direito em a pessoa ter a possibilidade de acessar e controlar dados pessoais mantidos em arquivos públicos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, §585).
O direito autônomo à autodeterminação informativa deriva-se de direitos expressos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como o direito à proteção à honra e à dignidade (CADH, art. 11), o direito à liberdade de pensamento e de expressão (CADH, art. 13) e o direito à proteção judicial (CADH, art. 25) (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, §586).
Por sua vez, a Corte Interamericana partiu da premissa segundo a qual os advogados desempenham um papel essencial na vigência das garantias fundamentais estabelecidas na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH). Nesse sentido, o art. 8.2 da CADH prevê obrigações em torno da inviolabilidade das comunicações entre o advogado e o representado. Trata-se de salvaguarda individual ao advogado e, mais do que isso, uma nova vertente de proteção institucional do próprio sistema judicial que anda de mãos dadas com a longa história de zelo pela independência de magistrados, membros do Ministério Público e outros eixos do Sistema de Justiça (MUDROVITSCH, Rodrigo. Voto concorrente, §18, proferido no seguinte julgamento: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas).
Aliás, a proteção convencional aos advogados não se promove por meio da garantia de estabilidade no cargo público, mas por meio de prerrogativas que têm por objetivo estabelecer as condições essenciais para a livre representação dos clientes, incluindo o sigilo das comunicações.
Os advogados, a propósito, são a primeira trincheira na defesa dos direitos humanos, pois são eles que acodem, em primeiro lugar, as vítimas que têm sido prejudicadas pela arbitrariedade estatal (MUDROVITSCH, Rodrigo. Voto concorrente, §209, proferido no seguinte julgamento: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Membros da Corporação Coletiva de Advogados “José Alvear Restrepo” vs. Colômbia. Sentença de 18 de outubro de 2023. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas).