Trilhas Jurídicas

INTERSECCIONALIDADE

INTERSECCIONALIDADE

Interseccionalidade consiste em levar em consideração vários fatores de subordinação e discriminação, com o objetivo de superar violações estruturais de direitos humanos e, assim, concretizar o princípio da igualdade ou da não discriminação.

Em algumas situações, dois ou mais fatores de discriminação se relacionam. É o que ocorre com as mulheres negras, cujos direitos humanos encontram grandes obstáculos relacionados à conjugação entre gênero, raça e classe social. 

Quem primeiro desenvolveu o conceito de interseccionalidade foi a jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw, em 1989. Em 2002, referida jurista afirmou que “a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação” (CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002, pág. 177). 

A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder produzem influência em uma sociedade marcada pela diversidade. Quando utilizada como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que diferentes categorias (raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia, faixa etária) se inter-relacionam e se moldam mutuamente. Tais categorias se sobrepõem e funcionam de forma unificada e, apesar de se apresentarem forma invisível, afetam todos os aspectos da vida social (COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Silma. Interseccionalidade. Prefácio. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2021). 

Vejamos um exemplo prático de enfrentamento de questões sociais que envolvem a interseccionalidade. Nas décadas de 1960 e 1970, mulheres ativistas negras tinham que lidar com problemas complexos, que negavam a elas o acesso à saúde, educação, trabalho, emprego. Tais mulheres buscaram apoio em movimentos sociais feministas, antirracistas e nos sindicatos que defendiam os direitos da classe trabalhadora. Cada um desses movimentos sociais privilegiava uma forma específica de ação em detrimento de outras: movimentos antirracistas focavam na raça; feminismo, no gênero; sindicatos, nos direitos trabalhistas (classe). Porém, as afro-estadunidenses eram também negras, mulheres e trabalhadoras, de modo que não bastava uma lente monofocal para enfrentar problemas multifocais. Os movimentos sociais, por outro lado, focavam em uma só categoria (ou raça, ou gênero, ou desigualdade social), de tal modo que os problemas complexos (raça, gênero, classe), que afligiam as mulheres afro-estadunidenses, não podiam ser enfrentados globalmente. Tais mulheres, então, passaram a utilizar a ferramenta da interseccionalidade, interligando a raça, o gênero e a classe, para que os direitos humanos fossem assegurados a esse grupo específico (COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Silma. Interseccionalidade. Prefácio. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2021). 

Por isso, é preciso juntar a raça, a classe e o gênero nas discussões de políticas públicas em favor das mulheres negras. É preciso fugir da tendência de universalização, de modo que se torna insuficiente, por exemplo, discutir o gênero, sem se atentar para o fato de que, mesmo em relação às mulheres brancas, a mulher negra fica na desvantagem. 

Em outras palavras, cumpre ressignificar as realidades de raça, gênero e classe, para se construírem novos horizontes e lugares de fala para a mulher negra. Assim se consegue dar voz aos sujeitos invisíveis (RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala, pág. 43. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019).

Mais um exemplo poderá nos ajudar a esclarecer melhor a interseccionalidade. Vejamos o problema do desemprego das mulheres negras  no Brasil

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) sistematizou dados colhidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). No dia 19 de outubro de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou essa análise feita pelo Dieese. 

A partir de dados da pesquisa, comprovou-se que, no Brasil, a população se divide entre 56,1% negros e 43,9% de não negros – em suma, a maioria da população brasileira compõe-se de pessoas negras. 

A maioria em número populacional, porém, não coincide com a maioria no número de ocupação. Em todos os cenários, a mulher negra sai perdendo. Em termos de desocupação (desemprego), ela perde para o homem branco (16,7% x 8,2%), para a mulher branca (16,7% x 12%) e para o homem negro. 

Foi constatado também que, em termos de remuneração de pessoas com “ensino superior em ocupações que exigem formação”, a mulher negra também sai perdendo. A remuneração média por hora encontra-se assim distribuída: R$ 47,00 para homens brancos; R$ 35,00 para mulheres não negras; R$ 34,00 para homens negros; R$ 24,00 para mulheres negras (IBGE, 2019). 

Isso significa que a mulher negra ocupa uma posição de subalternidade em termos de gênero e de raça. De gênero, porque sai em desvantagem em relação ao homem branco e ao homem negro. De raça, porque perde para os homens brancos e as mulheres brancas. Essas diferenças acabam por impactar, inclusive, na questão da classe social: as mulheres negras ocupam a parte mais baixa da pirâmide social. 

Assim, para resolvermos o problema da empregabilidade e dos salários das mulheres negras, o enfoque deve ser dado, simultaneamente, às questões de gênero, raça e classe. 

As questões de classe se resolvem com uma mudança mais estrutural da sociedade. Políticas econômicas inclusivas, distributivas de renda e com capacidade de empregabilidade influenciarão numa maior homogeneização das classes sociais. O neoliberalismo, com o enxugamento das políticas sociais, parece não ter sido o melhor instrumento para a superação das desigualdades sociais. 

Mas a abordagem de classe, por si só, não resolve o problema. Ainda que se adotem políticas genericamente emancipatórias, é possível que haja uma melhoria significativa nas condições sociais e econômicas de todos e todas. No entanto, o desnível em termos racial e de gênero permanecerá. 

Por isso, a melhoria nos níveis das condições de trabalho e de empregabilidade das mulheres negras depende de uma política que englobe, ao mesmo tempo, os critérios de raça, gênero e classe. 

Se a política for só de homogeneização entre as classes, o negro e a negra continuarão em situação de desigualdade em relação ao homem branco e à mulher branca. Se o critério for apenas o de gênero, a mulher negra ficará atrás da mulher branca. Se o critério for apenas o racial, a mulher negra continuará atrás do homem negro. 

Por isso, não basta insurgir-se apenas contra o capitalismo patriarcal, se quisermos, realmente, promover um sistema econômico que incorpore todas e todos no desfrute das riquezas e dos benefícios sociais. É importante que se incorpore a discussão sobre a raça. A discussão limitada ao gênero abraçará os direitos das mulheres brancas, mas ignorará o direito das mulheres negras.  

A feminilidade do século XIX reservava um papel à mulher branca. Esta última era vista como protetora, parceira e dona de casa amável para o marido. Não obstante o patriarcalismo dessa visão, a mulher branca tinha uma posição dentro da sociedade patriarcal. 

Diversamente se passava com a mulher negra, que não era protetora, nem parceira nem a dona de casa amável para o marido. A mulher negra era vista como reprodutora de mão-de-obra escrava, a ponto de os filhos pequenos poderem ser vendidos e enviados para longe, como bezerros separados das vacas (DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe, págs. 19 e 20. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016). Passado um ano da interrupção do tráfico de escravos nos Estados Unidos, um tribunal da Carolina do Sul entendeu que as mães negras não tinham nenhum direito legal sobre os filhos e as filhas. Assim, essas crianças podiam, em qualquer idade, serem vendidas e separadas das mães, porque essas crianças, entendeu referido tribunal, estavam no nível de outros animais (DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe, pág. 20. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016).

Se ontem a mulher negra estava à margem da própria feminilidade patriarcal, hoje a mulher negra permanece invisível aos olhos dos benefícios sociais e do desfrute das riquezas materiais. Altos índices de desemprego, salários baixos, precarização do trabalho. O processo de desumanização da mulher negra faz parte de uma herança histórica que continua enraizada nas estruturas sociais do Brasil. 

Por isso, é preciso juntar a raça, a classe e o gênero nas discussões de políticas públicas em favor das mulheres negras. É preciso fugir da tendência de universalização, de modo que se torna insuficiente, por exemplo, discutir o gênero, sem se atentar para o fato de que, mesmo em relação às mulheres brancas, a mulher negra fica na desvantagem. 

Em outras palavras, cumpre ressignificar as realidades de raça, gênero e classe, para se construírem novos horizontes e lugares de fala para a mulher negra. Assim se consegue dar voz aos sujeitos invisíveis (RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala, pág. 43. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019).

Nota-se, assim, que, na discriminação intersecional, há uma multiplicidade de fatores que geram a desigualdade. Tais fatores não são dissociados um do outro, de modo que atuam em conjunto para provocar a violação aos direitos humanos em relação a um certo grupo ou categoria de pessoas. 

A interseccionalidade é um método de análise da realidade a partir de diversos marcadores que existem. Os negros, mulheres, LGBTIAQUIA+, crianças possuem marcadores de vulnerabilidade (FERRITO, Bárbara. Interseccionalidade de raça, gênero e condição econômico na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aula proferida no dia 4 de outubro de 2024, no seguinte curso promovido na Escola Paulista da Magistratura (EPM): Estudos avançados sobre a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Fernando Antônio de Lima (coordenador)). 

A interseccionalidade é um monstro de vários tentáculos. Tem tentáculo para o gay que estuda, para a mulher autista, para a mulher preta no trabalho. Há também os marcadores de privilégio: uma mulher preta católica tem vantagens em termos religiosos, porque pode realizar o culto de forma aceita pela sociedade em relação a uma mulher negra do candomblé, por exemplo. É importante refletir sobre esses privilégios (FERRITO, Bárbara. Interseccionalidade de raça, gênero e condição econômico na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aula proferida no dia 4 de outubro de 2024, no seguinte curso promovido na Escola Paulista da Magistratura (EPM): Estudos avançados sobre a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Fernando Antônio de Lima (coordenador).

A INTERSECCIONALIDADE NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Neste tópico, iremos analisar dois casos nos quais a Corte Interamericana acolheu a teoria da interseccionalidade, para proteger situações específicas em que houve violações de direitos humanos.

No primeiro caso, Talía Lluy, com 3 anos de idade, foi contaminada com o vírus HIV, por conta de uma transfusão de sangue. Aos 5 anos, a criança foi impedida de ingressar na escola, sob a alegação de que havia risco de contágio às demais crianças. 

Segundo a Corte Interamericana, vários fatores de discriminação se reuniram para promover a grave violação aos direitos humanos dessa criança. Assim, tais fatores se associaram ao gênero (condição de mulher), à idade (criança), à situação de pobreza (condição econômica), à saúde (pessoa com HIV) e ao acesso à educação. Assim, a pobreza deu causa à deficiência no atendimento à saúde (sangue contaminado); a pobreza e o contágio, por sua vez, deram causa à negativa de acesso ao ensino de uma criança com HIV; a condição de mulher com HIV poderia ensejar estigmatização futura. A condição específica de Talía revela que a condição de criança com HIV produziu maior impacto em um grupo mais vulnerável (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador. Sentença de 1º de setembro de 2015 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §290. Confira-se: RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, pág. 300. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019).

Como a violação aos direitos dessa criança envolveu a prática estrutural de discriminação, mediante a mobilização de vários fatores (idade, gênero, condição econômica, acesso à educação, acesso à saúde), é necessário partir da teoria da interseccionalidade, para que as soluções sejam eficazes. 

Em razão disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou ao Estado do Equador a adoção das seguintes providências: a) tratamento médico e psicológico à criança, incluindo o fornecimento gratuito de medicamentos; b) concessão de uma bolsa de estudos para o término da graduação e para posterior pós-graduação; c) entrega de uma moradia digna, dentro do prazo de um ano; d) capacitação dos servidores da saúde, quanto às melhores práticas e respeito aos direitos das pessoas com HIV; e) pagamento de reparações por danos materiais e imateriais à vítima e familiares próximos. Confiram-se os pontos resolutivos da seguinte sentença: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador. Sentença de 1º de setembro de 2015 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). 

Em um segundo caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou internacionalmente o Brasil, em uma situação que envolveu a interseccionalidade de fatores de discriminação. Em referido caso, mulheres e meninas negras foram vítimas da explosão de uma fábrica de artifícios situação em Santo Antônio de Jesus, cidade situada no sertão baiano – tais. Tais pessoas, que viviam em situação de pobreza extrema, sem acesso a condições dignas de trabalho, vieram a falecer. Entendeu a Corte Interamericana que havia padrões de discriminação estrutural e interseccional, já que as vítimas se encontravam em situação de pobreza estrutural e eram, na grande maioria, mulheres e meninas afrodescendentes que não encontravam nenhuma alternativa econômica (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. Resumo oficial emitido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença de 15 de julho de 2020 (Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas)). 

Nesse sentido, quando houver discriminações estruturais e interseccionais, em que as vítimas estão em uma situação especial de vulnerabilidade, cumpre ao Estado um dever acentuado de respeito e garantia dos direitos humanos. Trata-se de uma interpretação dada ao art. 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos, orientado, no referido caso, a assegurar a igualdade material (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020 (Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas), §§ 197 a 199). 

A tendência, portanto, da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é associar a condição de pobreza, denominada discriminação em razão da posição econômica, com outros fatores de discriminação. Esses fatores, portanto, são agrupados de forma interseccionada pela jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos (POISOT, Eduardo Ferrer Mac-Gregor. Voto fundamentado, §60, no seguinte julgamento: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020 (Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas)). 

A interseccionalidade é um conceito amplamente utilizado pela Corte Interamericana, que usa marcadores diversos, além da raça e gênero. A interseccionalidade pode ser empregada muito além da raça e do gênero, com a utilização de mercadores relacionados à idade, origem, ao fato de a pessoa ser protetora de direitos humanos (esta última configura um marcador mais sutil). Há marcadores que tendem a aparecer mais, como gênero e raça, nem por isso são os únicos. É preciso lançar o olhar a partir das vulnerabilidades. Isso é fundamental para entender o real conceito em que se desenvolvem os fatos sociais (FERRITO, Bárbara. Interseccionalidade de raça, gênero e condição econômico na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aula proferida no dia 4 de outubro de 2024, no seguinte curso promovido na Escola Paulista da Magistratura (EPM): Estudos avançados sobre a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Fernando Antônio de Lima (coordenador)). 

Confira-se: CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: PACTO NACIONAL DO JUDICIÁRIO PELOS DIREITOS HUMANOS (CNJ)ORIGEM DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADECONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: FUNDAMENTO NORMATIVOPARADIGMAS OU PARÂMETROS INFERIORES DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADEPARADIGMAS OU PARÂMETROS SUPERIORES E O BLOCO DE CONVENCIONALIDADECONTROLE DE TRANSCONVENCIONALIDADE OU DE TRANSCONSTITUCIONALIDADEINSTITUIÇÕES E ÓRGÃOS INTERNOS RESPONSÁVEIS PELO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADEPLANOS DA VIGÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA e RESUMO: CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE