ORIGEM FILOSÓFICA DA DIGNIDADE HUMANA
A palavra dignidade provém de dignus, ou seja, daquilo que é importante. Essa é a origem etimológica da palavra. Veremos, agora, a origem filosófica.
Em Tomas de Aquino, a dignidade humana é tomada como uma qualidade inerente de todos os seres humanos, que os distingue dos demais seres e objetos. O ser humano, então, como imagem e semelhante de Deus, é dotado de dignidade¹.
Kant, por sua vez, para estabelecer o sentido de dignidade, parte do conceito de imperativo categórico. Imperativo categórico é um incondicional, ou seja, algo que não se presta a sujeitar-se a nenhuma condição.
Assim, um imperativo categórico contém em si o seu próprio fim, a sua própria finalidade, não se achando subordinado a nenhum valor exterior. Na Metafísica dos Costumes, Kant traz uma das formulações possíveis do imperativo categórico: o ser humano deve tratar tão bem a humanidade não só na pessoa dele, ser humano, mas, também, na pessoa de outros seres humanos – sempre ao mesmo tempo como um fim, e jamais simplesmente como um meio.
Segundo Kant, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. O preço pode ser substituído por um equivalente. Já aquilo que não possui um equivalente possui dignidade. As coisas, então, têm equivalente, ao passo que as pessoas, dignidade. Por isso, as pessoas jamais podem ser meios, instrumentos para o atingimento de resultados. As pessoas são fins em si mesmos, de modo que devem ser respeitadas, não podendo ser substituídas.
Confira-se, neste blog, o CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS e o CONTEÚDO DOS DIREITOS HUMANOS.
A PROIBIÇÃO DA INSTRUMENTALIZAÇÃO DA PESSOA NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA
Segundo a doutrina kantiana, vista no item anterior, as pessoas jamais podem ser instrumentos para o atingimento de resultados.
A propósito disso, vejamos um caso, julgado pela Corte Interamericana, em que uma professora perdeu o cargo em uma escola pública, depois que se descobriu que essa professora era homossexual. A Corte Interamericana, partindo do princípio da dignidade humana, entendeu que as pessoas têm o direito de autodeterminar-se e de escolher livremente as próprias opções e convicções.
Nesse sentido, articulando-se o princípio da dignidade humana com o princípio da autonomia da pessoa, a Corte Interamericana entendeu que a autonomia da pessoa desempenha um papel fundamental, ao vedar toda atuação estatal que visa à instrumentalização da pessoa. Isso significa que um ser humano não pode ser convertido em um meio para fins alheios às eleições sobre a própria vida, do próprio corpo e do desenvolvimento pleno da personalidade, dentro dos limites da CADH².
A PROIBIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NA DOUTRINA KANTIANA E A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA SOBRE O TEMA
A partir da proibição de a pessoa servir como instrumento alheio, Kant coloca a ação e a vontade humana a serviço da razão e da liberdade. O filósofo racionalista condena qualquer tipo de escravidão, subordinação abusiva, desigualdade injustificada, qualquer objetivação e instrumentalização do ser humano³.
Nesse sentido, segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o art. 6º, 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), proíbe que qualquer pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico de escravos e tráfico de mulheres.
Essa proibição tem um caráter especial essencial na CADH. Isso porque o art. 27.2 da CADH considera essas proibições como parte do núcleo inderrogável de direitos. Ou seja, trata-se de direitos que não podem ser suspensos em casos de guerra, perigo público ou outras ameaças4.
Assim, a proibição da escravidão constitui norma de jus cogens, ou seja, uma norma imperativa do direito internacional, e contém obrigações erga omnes segundo a Corte Internacional de Justiça5.
Uma norma de jus cogens revela-se como uma norma imperativa do direito internacional público, impregnada de padrões éticos sedimentados na comunidade internacional. A existência e eficácia desse tipo de norma independe da aquiescência dos sujeitos internacionais. Nos termos do art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, é nulo qualquer tratado que destoe do jus cogens. Esta última só pode ser derrogada por outra norma da mesma natureza6.
Já as obrigações erga omnes são aquelas que retratam questões essenciais à comunidade internacional, o que gera o interesse jurídico de os Estados protegerem tais obrigações7.
A escravidão (e suas formas análogas) é tida como um delito de direito internacional, cuja proibição apresenta um status de jus cogens. Por isso, não é possível invocar figuras processuais como a prescrição para se eximir da obrigação de investigar e sancionar esse delito, nos termos do entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos8.
A propósito, tramita, no Supremo Tribunal Federal, a ADPF 1053, proposta pela Procuradoria Geral da República. Essa ação do controle concentrado de constitucionalidade busca obter a não recepção de dispositivos do Código Penal, no que se refere à prescrição do crime de redução a condição análoga à de escravo.
Em sua petição, a Procuradoria Geral da República relembra justamente o Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Neste caso, foi visto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a imprescritibilidade dos crimes de escravidão. A Advocacia Geral da União se manifestou pela procedência do pedido formulado na ADPF 1053. O relator dessa ADPF é o Ministro Nunes Marques.
Em suma, a proibição da escravidão (e suas formas análogas), segundo a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos: a) configura norma de jus cogens, isto é, norma imperativa do direito internacional público, não podendo ser derrogada por tratados ou por outra expressão da vontade dos sujeitos internacionais; b) expressa obrigação erga omnes, ou seja, questões essenciais para a comunidade internacional; c) representa delito imprescritível.
Observa-se, assim, que a proibição da escravidão ingressa na ideia kantiana de que nenhuma pessoa pode ser tratada como um meio – mas sempre como um fim. A ação e a vontade humana devem ser postas a serviço da razão e da liberdade.
1RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos, págs. 52 e 53. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024.
2CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Pavez Pavez vs. Chile. Sentença de 4 de fevereiro de 2022 (Mérito, Reparações e Custas), §59
3Confira-se: HOTTOIS, Gilberto. Do Renascimento à Pós-Modernidade. Uma história da filosofia moderna e contemporânea, págs. 181 e 182. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2008; KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril, v. XXV, 1974, Coleção os Pensadores.
4CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §243.
5CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §243.
6GARCIA, Émerson. Jus Cogens e Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 64, abril/jun. 2017, págs. 95 a 97.
7SOLON, Clara Martins. Responsabilidade agravada do Estado: violações graves de normas de jus cogens e o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Revista do IBDH, nº 6, pág. 59 a 79. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r28545.pdf.
8Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §§ 412 e 413.