O parâmetro inferior é aquilo que será objeto do controle de convencionalidade. São as normas jurídicas internas, isto é, as normas jurídicas em sentido amplo que são produzidas no Brasil.
Ex.: o Brasil, em 1979, editou a Lei da Anistia, por meio da qual foram perdoados crimes políticos e crimes conexos. Ao fazer referência a crimes conexos, a referida lei perdoou as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos da ditadura militar brasileira iniciada em 1964.
A Lei da Anistia viola tratados internacionais de direitos humanos, particularmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que protege, entre outros, o direito à vida (art. 4) e o direito à integridade pessoal (art. 5).
Portanto, ao anistiar a tortura e homicídios praticados por agentes estatais, a Lei da Anistia violou a CADH.
Nesse sentido, a Lei da Anistia é o parâmetro inferior ou objeto do controle de convencionalidade. Já a CADH é o parâmetro superior do controle de convencionalidade.
O parâmetro ou paradigma inferior ou o objeto do controle de convencionalidade são as normas jurídicas internas (domésticas) em sentido amplo, tais como leis, atos normativos, atos administrativos, políticas públicas, normas constitucionais, políticas públicas.
Suponhamos que a Constituição de um determinado País proíba o controle de constitucionalidade de leis editadas antes da Constituição em vigor. Essa lei estipula a pena de morte para certos delitos e viola, portanto, a Constituição, no ponto em que esta última proíbe pena degradante. Referida lei, que no sistema interno não pode ser objeto de controle de constitucionalidade, pode ser parâmetro inferior para o controle de convencionalidade?
Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sim. Isso aconteceu com uma lei interna de Barbados. O tribunal máximo de apelação aplicou a Constituição nacional e decidiu que a lei não poderia ser objeto de controle de constitucionalidade, já que editada antes da Constituição de 1996. Esta Constituição proibia o controle de constitucionalidade de leis editadas antes da Constituição então vigente.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, contudo, entendeu que o tribunal máximo de apelação limitou-se a fazer uma interpretação puramente constitucional, sem levar em conta as obrigações que o Estado assumiu em relação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo o art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, Barbados deve cumprir de boa-fé as obrigações que assumiu perante a CADH e não poderá invocar as disposições de direito interno como justificativa para o não cumprimento das obrigações convencionais (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Boyce e outros vs. Barbados. Sentença de 20 de novembro de 2007 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §77).
É interessante notar que, nesse caso envolvendo Barbados, a Constituição proibia o exame judicial de lei anterior à Constituição vigente, ainda que tal lei violasse direitos humanos. Na hipótese, a lei previa a pena de morte.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que, ao editar essa norma constitucional, Barbados não cumpriu com os seguintes dispositivos da CADH: a) art. 2 (dever de adotar medidas que tornem efetivos os direitos humanos) da CADH: o Estado deve adotar medidas legislativas e de outra natureza para tornar efetivos os direitos humanos; b) art. 1.1 (dever de garantia dos direitos humanos) da CADH: o Estado deve garantir, sem discriminação, os direitos humanos. Na hipótese, estava em jogo o direito humano em não ser arbitrariamente privado do direito à vida (CADH, art. 4.1 e art. 4.2); c) direito à proteção judicial (CADH, art. 25.1) (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Boyce e outros vs. Barbados. Sentença de 20 de novembro de 2007 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), §80).
NORMA CONSTITUCIONAL PODE SER PARÂMETRO INFERIOR DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE?
Uma norma constitucional, mesmo que provinda do Poder Constituinte Originário, pode ser objeto de controle de convencionalidade?
Entendo que sim. É possível que uma norma constitucional viole um dispositivo mais protetivo dos direitos de um tratado internacional. Essa norma constitucional pode ser invalidada por meio do controle de convencionalidade, ou, pelo menos, afastada na análise de um caso concreto, para dar lugar a uma norma jurídica internacional mais protetiva.
A propósito, segundo o art. 2 da CADH, os Estados devem adotar normas de direito interno que tornem efetivos os direitos humanos previstos na CADH. Se uma norma constitucional proteger menos os direitos humanos que um tratado internacional de direitos humanos, a norma desse tratado prevalece.
É que, no âmbito da Hermenêutica dos Direitos Humanos, há o princípio da prevalência ou da preferência da norma mais favorável aos direitos humanos. Não importa a hierarquia ou a origem (interna ou internacional): sempre prevalece a norma mais protetiva, conforme, aliás, dispõe o art. 29 da CADH.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos já afastou uma norma constitucional menos protetiva aos direitos humanos. Analisemos o Caso Olmedo Bustos e outros vs. Chile, julgado pela Corte Interamericana (sentença de 5.2.2001). Em referido caso, um órgão do Poder Executivo chileno proibiu a veiculação do filme “A Última Tentação de Cristo”. A Suprema Corte chilena, com base na Constituição Chilena, que possibilitava a censura cinematográfica, manteve a proibição da veiculação do filme. Argumento: princípios cristãos e honra de Jesus Cristo.
A Corte Interamericana, então, responsabilizou o Estado do Chile por violação ao direito à liberdade de pensamento e de expressão, previsto no art. 13 da CADH. Não houve violação à liberdade religiosa, prevista no art. 12 da CADH, porque as pessoas continuam com o direito de expressar sua religião.
Esse caso demonstra que qualquer norma interna, de qualquer hierarquia (lei, Constituição), se violar tratados internacionais de direitos humanos, pode ensejar a responsabilidade internacional do Estado. A Corte determinou que o Estado chileno reformasse a Constituição. O Chile cumpriu essa determinação e alterou a redação do dispositivo constitucional que autorizava a censura prévia.
Portanto, uma norma constitucional pode, sim, ser objeto de controle de convencionalidade, caso tal norma violar um tratado internacional de direitos humanos.
É importante destacar que o controle de convencionalidade é apenas uma ferramenta para assegurar a supremacia das normas internacionais das quais é parte cada Estado membro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (MIDÓN, Mario A. R. Control de convencionalidad, pág. 83. 1ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2016).
Sustentar que uma norma constitucional pode ser invalidada diante de um tratado internacional de direitos humanos quer dizer que se busca, com isso, a máxima proteção dos direitos humanos.
Nesse sentido, se a norma constitucional for mais protetiva que a norma do tratado, aquela deve prevalecer, segundo o princípio da prevalência ou da preferência da norma mais favorável aos direitos humanos, previsto no art. 29 da CADH.
Esclareça-se que, no direito das gentes, existe uma norma consuetudinária segundo a qual, ao ratificar um tratado de direitos humanos, o Estado tem o dever de introduzir, em seu direito interno, as modificações necessárias para assegurar o cumprimento das obrigações assumidas. Essa norma consuetudinária é universalmente aceita e encontra respaldo jurisprudencial (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso A Última Tentação de Cristo. Sentença de 5 de fevereiro de 2001).
Daí que, segundo o art. 2 da CADH, cumpre ao Estado adotar medidas legislativas necessárias para tornar efetivos os direitos humanos. É a consagração do princípio do efeito útil ou do gozo eficaz do direito violado. Quando a Constituição viola os direitos assegurados na CADH, tal Estado tem que modificar a própria Constituição, para alcançar a proteção assegurada por esse tratado internacional de direitos humanos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso A Última Tentação de Cristo. Sentença de 5 de fevereiro de 2001 (Mérito, Reparações e Custas), §87).
Nesse sentido, em consequência do próprio controle de convencionalidade, a regra constitucional que lesiona um tratado internacional de direitos humanos não pode ser aplicada, ou deve ficar paralisada (SAGÜES, Néstor P. El control de convencionalidad, en particular sobre las Constituciones nacionales.
Se uma norma constitucional do Poder Originário pode ser objeto de controle de convencionalidade, segundo entendeu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma norma constitucional do Poder Originário não pode ser objeto de controle de constitucionalidade, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF, Plenário, ADI nº 815, Relator Ministro MOREIRA ALVES, julgamento no dia 28 de março de 1996).
É possível lançar os seguintes argumentos, para permitir que uma norma constitucional seja objeto do controle de convencionalidade (MIDÓN, Mario A. R. Control de convencionalidad, pág. 88 a 90. 1ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2016):
1º) O art. 26 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados prevê o chamado pacta sunt servanda. De acordo com referido art. 26, “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé”. Portanto, proibir o controle de convencionalidade de uma norma constitucional significa deixar de reconhecer o caráter obrigatório de um tratado internacional de direitos humanos. Faltaria boa-fé do Estado, que, voluntariamente, comprometeu-se a cumprir o tratado.
2º) Segundo o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Assim, nem mesmo uma disposição constitucional pode ser invocada para descumprir um tratado internacional de direitos humanos.
3º) Em 1998, o Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso significa que as sentenças da Corte Interamericana vinculam o Brasil não só nos casos em que o Brasil seja parte (res judicata), mas, também, quando a Corte Interamericana forma jurisprudência em casos nos quais nosso Estado não foi parte (jus interpretata). Se a Corte Interamericana tem entendido que mesmo as normas constitucionais são passíveis de controle de convencionalidade, contrariar essa orientação significa desrespeitar o entendimento da Corte Interamericana, cuja jurisprudência é vinculativa ao Brasil.
4º) Nos termos do art. 1.1 da CADH, o Estado deve garantir, sem discriminação, os direitos humanos. Para tanto, nos termos do art. 2 da CADH, é preciso que o Estado adote todas as medidas necessárias, inclusive de caráter legislativo, para que os direitos humanos sejam efetivamente garantidos. Assim, se uma norma constitucional violar a CADH, essa norma deve ser suprimida ou alterada pelo Estado, que tem o dever, repita-se, de adotar as medidas legislativas necessárias para tornar efetivos os direitos humanos. A propósito, há uma norma consuetudinária do direito internacional, de validade universal, reconhecida desde 1924 pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional. Segundo essa norma consuetudinária, os Estados que subscrevem um tratado devem introduzir, no direito interno, as modificações necessárias para que esse tratado seja cumprido. Anote-se que o Tribunal Permanente de Justiça Internacional funcionou entre os anos de 1922 e 1940 e foi extinto em 1946, vindo a ser substituído pela Corte Internacional de Justiça (CIJ).
5º) Reconhecer a primazia do tratado internacional de direitos humanos não significa ofender a soberania do Estado em editar normas constitucionais. É que, se em conflito com um tratado de direitos humanos, a norma constitucional só será afastada se for menos protetiva que o tratado. Se for mais protetiva, a própria norma constitucional terá preferência sobre o tratado, por força da primazia ou da preferência da norma mais favorável aos direitos humanos.
Porém, segundo o Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais de direitos humanos, cuja aprovação não seguiu o rito do art. 5º, §3º, da CF/88, têm natureza supralegal: acima das leis, mas abaixo da Constituição Federal.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por exemplo, é um tratado internacional de direitos humanos que não observou o procedimento do art. 5º, §3º, da CF/88. Ou seja, tal tratado não foi aprovado nas 2 Casas do Congresso Nacional, nem seguiu a aprovação em 2 turnos. Portanto, a CADH seria um tratado internacional de direitos humanos com natureza supralegal.
O argumento principal do Supremo Tribunal Federal para chegar a essa compreensão é de que o nosso sistema jurídico adota o princípio da supremacia formal e material da Constituição. Logo, a Constituição é um diploma normativo superior às demais normas do ordenamento jurídico – superior até mesmo aos tratados internacionais de direitos humanos que não adotaram o procedimento do art. 5º, §3º, da CF/88.
Assim, para o Supremo Tribunal Federal, uma norma constitucional não pode ser objeto de controle de convencionalidade, isto é, não pode ser invalidada perante um tratado internacional de direitos humanos não aprovado segundo o rito do art. 5º, §3º, da CF/88.
Referido entendimento, contudo, caso uma norma constitucional seja menos protetiva que um tratado de direitos humanos, pode implicar o descumprimento de tratados internacionais de direitos humanos pelo Estado brasileiro, possibilitando a responsabilidade internacional do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Por fim, acredito que mesmo atos praticados por particulares podem ser objeto de controle de convencionalidade. Suponhamos que os funcionários de um restaurante discriminem duas pessoas em união homoafetiva. Essa conduta do restaurante pode ser objeto de controle de convencionalidade, porque viola tratados internacionais de direitos humanos.
Confira-se: CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: PACTO NACIONAL DO JUDICIÁRIO PELOS DIREITOS HUMANOS (CNJ), ORIGEM DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE, CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: FUNDAMENTO NORMATIVO