Para se aprofundar ainda mais sobre o tema aqui exposto, confira-se a TEORIA DO DUPLO CONTROLE.
DÉFICE DEMOCRÁTICO DO PODER JUDICIÁRIO NACIONAL E DA CORTE INTERAMERICANA?
O Brasil, atualmente inserido no sistema regional interamericano de direitos humanos, conta com duas instituições importantes na tarefa de dar a última palavra em matéria de interpretação do Direito.
Na esfera nacional, é o Poder Judiciário brasileiro que soluciona as controvérsias, com a obrigação de fornecer a última interpretação sobre o Direito.
A propósito, o Supremo Tribunal Federal, como instituição de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, é encarregado de guardar a Constituição Federal, nos termos do art. 102, caput, da Constituição Federal brasileira. Ao guardar a Constituição, o Supremo Tribunal Federal é considerado o derradeiro intérprete da Constituição. É a palavra final do STF que dirá o que diz a Constituição.
Portanto, nacionalmente, o Poder Judiciário brasileiro em geral e o Supremo Tribunal Federal em específico no que toca à matéria constitucional são os intérpretes últimos da ordem jurídica brasileira. As controvérsias jurídicas que existirem sobre o direito podem ser levadas a esse Poder, que será o responsável por ditar os rumos da interpretação jurídica no País.
Na esfera do sistema regional interamericano ao qual se submete o Brasil, a última palavra em matéria de direitos humanos cabe à Corte Interamericana de Direitos, cuja jurisprudência vincula o Estado brasileiro.
Até aqui se pode afirmar que, no Brasil, o Poder Judiciário nacional é o que soluciona as controvérsias que possam vir a surgir em torno da aplicação do direito. Se o tema envolver direitos humanos, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha se pronunciado sobre a aplicação da Constituição Federal, o caso poderá ser submetido à Corte Interamericana. Esta última é a última intérprete em matéria de direitos humanos.
De qualquer forma, seja a controvérsia recebendo a última palavra do Poder Judiciário brasileiro ou da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os membros dessas instituições não foram democraticamente eleitos.
A grande maioria dos juízes brasileiros ingressa na carreira por meio de concursos de provas e títulos. Os membros do Supremo Tribunal Federal passam a integrar essa alta corte por meio de uma atuação conjunta entre o Senado Federal e o Poder Executivo federal.
Já as juízas e juízes da Corte Interamericana são eleitos pelos Estados-partes da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), no âmbito da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, nos termos do que dispõe o art. 53.1 da CADH.
Em comum ao Poder Judiciário nacional e à Corte Interamericana de Direitos Humanos está o fato de os respectivos juízes não serem democraticamente eleitos. Isso gera questionamentos em torno da legitimidade democrática desses magistrados, principalmente quando um tema de direitos humanos ou fundamentais é decidido contra a vontade da maioria expressa pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo.
Nasce, então, um conflito entre o acesso à justiça e a representação popular: até onde o Poder Judiciário pode interferir naquilo que os poderes democráticos eleitos (Poder Executivo e Poder Legislativo) decidiram? O Poder Judiciário pode derrubar uma lei que criminaliza o uso recreativo de drogas ou que proíbe o aborto? A Corte Interamericana pode determinar que a União, por meio do Executivo Federal, forneça políticas públicas em favor dos indígenas e das pessoas negras?
Democracia não é apenas direito de votar. Nem sempre as decisões expressas por maiorias, representadas pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo, concretizarão direitos. É possível, muitas vezes, que as decisões desses poderes ignorem os direitos de grupos historicamente discriminados, como ocorre, com frequência, na ausência de demarcação das terras indígenas, na insuficiência de políticas públicas em favor das pessoas negras, das mulheres, crianças e adolescentes, idosos, pessoas da comunidade LGBTIQUIA+.
Democracia nunca dispensou o componente da proteção dos direitos humanos. Em sua origem, a palavra democracia se confundia com isonomia, que nada mais é do que igualdade perante a lei. Se a democracia dos modernos é uma democracia representativa, a democracia representativa não dispensa a proteção da igualdade de direitos.
Nesse sentido, o atual marco do Estado Democrático de Direito exige que os direitos humanos sejam assegurados nas relações sociais. O Direito, então, exerce uma ação transformadora na sociedade em que se insere.
Portanto, além das instituições escolhidas pelo povo (Executivo e Legislativo), é preciso que o sistema conte com instituições que observem se o ordenamento jurídico está sendo cumprido (Judiciário nacional e Corte Interamericana de Direitos Humanos). Democracia não implica, apenas, que o povo soberano ocupe o poder no lugar do monarca; democracia está muito próxima da ideia de direitos fundamentais.
Nesse sentido, a legitimação do Poder Judiciário nacional e da Corte Interamericana de Direitos Humanos não é busca na eleição dos juízes, mas, sim, na possibilidade que se confere a elas de determinar que o ordenamento jurídico seja cumprido – e os direitos, efetivados.
Mas isso não basta.
Para que essa legitimação democrática exista, o Poder Judiciário nacional e a Corte Interamericana, na tarefa de últimos intérpretes do direito, devem contar, no processo de criação das decisões judiciais, com um certo grau de participação popular.
Sem essa participação popular mínima, corre-se o risco de surgirem decisões autocráticas, corporativas, que anulem indiscriminadamente as decisões tomadas pelas instituições eleitas pelo povo, sem com isso proteger efetivamente os direitos do próprio povo.
É aí que entram os mecanismos de participação popular no âmbito das instituições judiciais. É o caso, por exemplo, do amicus curiae e das audiências públicas, do amplo acesso à justiça pelos indivíduos e órgãos representativos do povo.
A SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO E DA CONVENÇÃO
Para conferir maior legitimidade democrática à Corte Constitucional, Peter Häberle propõe uma hermenêutica constitucional adequada à sociedade pluralista ou à chamada sociedade aberta.
O processo de interpretação constitucional deixa de ser uma vocação exclusiva do Poder Judiciário, passando a incorporar vários partícipes. O processo constitucional torna-se parte do direito de participação democrática.
Tradicionalmente, a interpretação constitucional esteve vinculada a um modelo de uma sociedade fechada. O processo interpretativo se vinculada aos juízes nos procedimentos formalizados. Em termos democráticos, é preciso pensar uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Deve-se ampliar o rol de sujeitos participantes do processo de interpretação constitucional.
Isso significa que quem vive a norma acaba por interpretá-la. Cidadãos, grupos, órgãos estatais, o sistema público, a opinião pública – todas essas potências públicas atuam, pelo menos, como pré-intérpretes da Constituição. A Corte Constitucional apenas dá a última palavra, levando em conta as contribuições dadas pelos pré-intérpretes ou potências públicas.
Assim, em ação na qual se discutia a constitucionalidade de restrições a atividades religiosas coletivas no período mais grave da Covid-19, o Supremo Tribunal Federal, antes de tomar a decisão definitiva sobre o tema, admitiu a participação de diversas entidades religiosas. As entidades ligadas à religião, cujos cultos coletivos seriam afetados, foram ouvidas no processo de interpretação constitucional.
As cidadãs e os cidadãos e os grupos, como verdadeiros pré-intérpretes da Constituição, tornam-se forças produtivas no processo de interpretação. É impensável, numa democracia, que a jurisdição constitucional interprete a Constituição sem a participação dos principais interessados. Não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, de modo que tais intérpretes não detêm o monopólio da interpretação do texto constitucional.
Isso significa que a interpretação constitucional não se revela como um evento exclusivamente estatal. Têm acesso a ela todas as forças da comunidade política. O próprio cidadão que formula um recurso constitucional é intérprete da Constituição.
No plano interno, o Supremo Tribunal Federal tem implementado o instituto do amicus curiae e das audiências públicas. Trata-se de uma legitimação democrática que se busca imprimir ao processo de interpretação constitucional.
Quando se interpreta a Constituição, muitos são os destinatários da interpretação. Por isso, em termos democráticos, é preciso que tais destinatários participem do processo interpretativo, mediante a apresentação de argumentos que vão auxiliar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse processo de interpretação, aliás, já participavam a pessoa que propunha a ação, a Advocacia que representava essa pessoa, bem assim o Ministério Público, a Defensoria Públicas, as Procuradorias, nos processos em que esses órgãos atuam processualmente.
O “amicus curiae” e as audiências públicas vieram para incrementar a participação popular, imprimindo um maior componente democrático ao processo de interpretação que o Supremo Tribunal Federal desenvolve sobre a Constituição. Tanto é verdade que, segundo o STF, para que se admita a participação do “amicus curiae”, é preciso que se comprove a existência de um interesse institucional colaborativo e democrático.
Se muitos são os destinatários da interpretação realizada sobre a Constituição pelo Supremo Tribunal Federal, muitos, também, são os destinatários da interpretação que a Corte Interamericana faz sobre a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos e em relação a outros instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos.
Portanto, a legitimidade democrática da Corte Interamericana, que nem é instituição brasileira mas do sistema regional interamericano de direitos humanos, depende de ampla participação dos interessados ou de órgãos ou entidades que representam ou defendem esses interessados.
Logo, aqueles que vivem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cuja última interpretação cabe à Corte Interamericana, acabam vivendo o contexto dessa convenção.
Assim, em um caso em que o Estado brasileiro foi condenado por violação de direitos humanos em uma operação policial que resultou na morte de várias pessoas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos admitiu a participação, como amicis curiae, de diversas entidades, tais como o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL).
Nessa ordem de ideias, a partir das ideias de Peter Häberle, que propõe, em relação à Constituição e à Corte Constitucional, a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, é possível se falar, no que toca à Corte Interamericana e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em sociedade aberta dos intérpretes da Convenção.
Aliás, o próprio Judiciário nacional, além de examinar a Constituição, analisa tratados internacionais de direitos, naquilo que se tem denominado de controle de convencionalidade. Isso significa que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos acaba sendo examinada não apenas pela Corte Interamericana, mas também pelo Poder Judiciário nacional.
Aí já se nota mais uma ampliação dos intérpretes da Convenção Americana sobre Direitos. Não cabe apenas à Corte Interamericana interpretar esse tratado internacional de direitos humanos.
Por ora, observou-se que, além da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o “amicus curiae” que intervém nos processos dessa Corte e os próprios juízes e juízas nacionais interpretam a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Não bastasse tudo isso, temos a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, com os seus informes e recomendações e com a possibilidade de propor demanda na Corte Interamericana.
A vítima também contribui com essa interpretação, porque, embora não possa ajuizar ação na Corte Interamericana, tem ampla participação processual na demanda já proposta.
O Estado-parte da Convenção, por sua vez, que se submete à jurisdição contenciosa da Corte, pode apresentar os respectivos argumentos nesse tribunal internacional de direitos humanos – seja ao propor uma demanda, seja quando figurar como réu.
Esse contexto de participação de diversos atores – institucionais (estatais) ou não – configura autenticamente a sociedade aberta a que se refere Peter Häberle. Não se trata de uma obra exclusiva ou voluntarista dos juízes da Corte Interamericana, mas um produto inacabado da comunidade interamericana. Eis a sociedade aberta dos intérpretes da Convenção.
É importante esclarecer que a compreensão hermenêutica da sociedade aberta dos intérpretes da Convenção não leva a um convencionalismo abusivo nem a fragmentações interpretativas. Isso porque a Corte Interamericana continua como a intérprete última da Convenção Americana, isto é, a instituição que dá a última palavra sobre esse tratado internacional de direitos humanos.
Portanto, como há várias pessoas que vivem as normas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, há vários possíveis intérpretes dessa Convenção. Para evitar confusões e fragmentações interpretativas, a Corte Interamericana, depois de sopesar os vários argumentos apresentados, dá a última palavra sobre a interpretação da Convenção.
Devido à multiplicidade de possíveis intérpretes, segue-se que o processo de interpretação é infinito. Se as Cortes Constitucionais atuam como mediadoras das diversas interpretações sobre a Constituição, a Corte Interamericana apresenta-se como a mediadora das diversas interpretações feitas pela diversidade dos intérpretes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
EFEITO BACKLASH (CONTRA-ATAQUE)
Em temas mais polêmicos, quando o Poder Judiciário atua contra a vontade do Poder Executivo e do Legislativo para a promoção dos direitos humanos, é possível que haja reações.
O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, discute atualmente a inconstitucionalidade da criminalização da posse e porte de drogas para consumo pessoal. Alguns parlamentares reagiram, propondo a inclusão, na Constituição Federal, da referida criminalização.
Há outras formas de reação, como aquela denominada de packing ou empacotamento: aumenta-se o número de membros do Tribunal, para que se forme uma nova maioria – nova maioria, essa, que produza um entendimento diferente do anterior. O Supremo Tribunal Federal, com mais membros, passa a aderir à vontade do Poder Executivo e do Poder Legislativo nos temas mais polêmicos.
Essa reação àquilo que alguns denominam de ativismo judicial indevido tem partido de outros poderes, naquilo que se denomina efeito backlash (contra-ataque).
Nesse sentido, efeito backlash nada mais é do que a reação do Poder Executivo ou Legislativo contra uma decisão judicial que tenha sido favorável a um determinado tema controvertido de direitos humanos. É uma forma de se enquadrar o Poder Judiciário, principalmente quando esse poder passa a atuar na proteção dos direitos humanos.
Trata-se de um problema que as democracias têm enfrentado, nos choques entre a proteção dos direitos humanos pelo Poder Judiciário e a vontade da maioria representada pelos Poderes Executivo e Legislativo.
A participação da sociedade civil, por meio da figura do “amicus curiae” e das audiências pública, é uma forma de imprimir maior participação popular na construção das decisões judiciais. São formas de minimizar os choques entre os poderes nas questões controversas envolvendo direitos humanos.